Resolução 400/2016 da Anac não pode Afetar os Direitos dos Usuários
Por Joseane Suzart Lopes da Silva
Em 14 de dezembro de 2016, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) editou a Resolução 400/2016, que disciplina as condições contratuais gerais do transporte aéreo de passageiros, tanto na fase prévia quanto no momento da sua execução e na etapa posterior. Iniciou-se a vigência desse ato normativo em 14 de março de 2017, suscitando discussões acerca de determinadas regras cujo teor denota contradição com o preconizado pela Lei 8.078/90, que contempla o microssistema de proteção e defesa dos consumidores.
As questões conflituosas oriundas da aplicação daquela resolução podem ser agrupadas em dois conjuntos que englobam a possibilidade de alteração do contrato de transporte aéreo de passageiros e o traslado das bagagens dos usuários. A reestruturação do negócio jurídico pode dar-se em decorrência de conduta gerada pelo próprio passageiro ou pelo transportador. O usuário do serviço poderá remarcar a passagem aérea, desistir desta ou não se apresentar para o embarque (no show), sendo-lhe impostas sanções. Admitiu-se a modificação do serviço de transporte aéreo de pessoas pelo prestador de forma programada ou não, configurando-se por meio dos atrasos para a decolagem, da preterição quanto ao embarque de passageiro e do cancelamento de voo.
Em relação às bagagens dos consumidores, estabelece a Resolução 400/2016 que se trata de um contrato acessório e, consequentemente, a empresa não é obrigada a transportá-la de forma gratuita, eliminando-se a anterior franquia vigente. Tornou-se também possível a isenção de responsabilidade em face de itens frágeis, fixando-se valores para a compensação financeira do usuário diante de problemas com os itens que compõem a bagagem. Outras duas questões relevantes constituem a presunção de regularidade da bagagem recebida pelo consumidor e a exigência de que este declare bens cujos valores indenizatórios sejam elevados.
Destina-se, nessa senda, o presente artigo a analisar as normas que versam sobre o contrato de transporte aéreo de passageiros em cotejo com o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, através de uma interpretação sistemática baseada no diálogo das fontes em busca de soluções que maximizem os direitos da parte contratual mais vulnerável — o usuário do serviço executado.
1. Da alteração do contrato de transporte aéreo pelo passageiro
A possibilidade de os consumidores desistirem das passagens aéreas sem ônus desde que adquiridas com antecedência igual ou superior a sete dias da data de embarque, comunicando o seu objetivo no prazo de até 24 horas, a contar do recebimento do seu comprovante, prima facie, parece ser um benefício alcançado com a Resolução 400/2016. Entretanto, a liberdade tarifária reiterada pelo artigo 2º desse conjunto normativo possibilitará que as empresas de transporte aéreo fixem multas exorbitantes para as hipóteses em que a desistência por parte do passageiro dê-se em período inferior a uma semana, como já se observa no campo concreto. Mesmo que o consumidor apresente um motivo plausível para o cancelamento da passagem ou para o no show, sofrerá penalidades caracterizadoras de vantagem exagerada vedada pelo artigo 39, V, do CDC[1].
Limitou-se a Anac a prever que, em caso de remarcação ou resilição solicitada pelos passageiros, “as multas contratuais não poderão ultrapassar o valor dos serviços de transporte aéreo”, bem como que “as tarifas aeroportuárias pagas pelo passageiro e os valores devidos a entes governamentais não poderão integrar a base de cálculo de eventuais multas” (artigo 9º, caput e parágrafo único). Previu ainda que os transportadores deverão oferecer ao consumidor pelo menos uma opção de passagem aérea cuja multa não ultrapasse o percentual de 5% sobre o valor total para as hipóteses de reembolso ou remarcação.
Na prática, as empresas que fazem o transporte aéreo de passageiros darão vazão às costumeiras práticas abusivas, fixando multas altíssimas quando o pleito de desistência for superior a uma semana, quando o consumidor pugnar pela remarcação ou não comparecer para embarque. Elas poderão reter até 99% do valor pago, visto que a única regra imposta é no sentido de que a multa não abranja o valor total do serviço.
2. Da modificação do serviço aéreo de traslado de passageiros pelo transportador
A modificação unilateral planejada do contrato de prestação de serviço de transporte aéreo de passageiros, no que concerne a horário e itinerário previstos, foi acatada pelo artigo 12 da resolução, exigindo-se tão somente que seja comunicada aos passageiros com antecedência de, no mínimo, 72 horas. Não sendo os usuários informados em tal prazo ou se o horário de embarque ou de aterrissagem ultrapassar 30 minutos em voos domésticos ou uma hora em traslados internacionais, o fornecedor deverá disponibilizar reacomodação e reembolso integral. A exegese literal e perfunctória desse dispositivo poderia conduzir à reflexão infundada de que a empresa transportadora, em caso de alteração planejada, não estaria obrigada a indenizar os consumidores em razão dos danos materiais e morais sofridos. Contudo, as transformações geradas, de forma potestativa ao conteúdo dos negócios jurídicos firmados, são práticas arbitrárias vedadas pelo CDC e que suscitarão as reparações necessárias.
A Anac legitimou os atrasos dos voos como se fossem normais e admissíveis, determinando apenas que a empresa fique, a cada 30 minutos, informando aos passageiros a previsão do horário de partida. Absurda essa situação, posto que a agência reguladora deveria determinar que as transportadoras cumprissem rigorosamente os horários previstos, exceto nas hipóteses de força maior ou de caso fortuito externo. Por outro lado, a assistência material garantida para os consumidores, a depender do tempo de espera, não elide o direito destes de peticionarem pela indenização devida perante o Poder Judiciário. Não serão as facilidades de comunicação, alimentação e hospedagem que solucionarão todos os problemas dos usuários que se deparam com atrasos na partida e a consequente chegada dos voos nos seus destinos. Os danos materiais e morais devem ser reconhecidos pelo Poder Judiciário mesmo que o passageiro seja reacomodado em outro voo e consiga embarcar[2].
O overbooking foi admitido, expressamente, pela Resolução 400/2016, mediante a aceitação da preterição injustificada de passageiros, visto que os seus artigos 22 e 23 permitem que o número de passageiros para o voo exceda a disponibilidade de assentos na aeronave, devendo o transportador procurar por voluntários para serem reacomodados em outra aeronave por meio de compensação negociada. Inaceitável que as pessoas comprem passagens aéreas e fiquem receosas de que não conseguirão embarcar diante do excesso de passageiros legitimado escancaradamente pela autarquia reguladora. Desrespeita-se o direito do consumidor ao fiel cumprimento dos termos contratuais e da sua boa-fé objetiva em se programar para embarcar em determinado voo e horário.
Dando continuidade à inadmissível violação ao teor da Lei 8.078/90, a Anac considera que não haverá preterição se houver a reacomodação do passageiro voluntário em outro voo. Mesmo que o consumidor aceite viajar em outra aeronave, não significa que esteja impedido de ingressar em juízo para peticionar os danos materiais e morais sofridos. Culminando a relegação do microssistema consumerista a segundo plano, a resolução fixa valores para as hipóteses de preterição, ferindo literalmente o direito à reparação integral dos usuários do serviço de transporte aéreo em face dos danos sofridos. Como se pode admitir que a compensação financeira no importe de 250 DES (Direitos Especiais de Saque), para voo doméstico; ou de 500 DES, ocorrendo voo internacional, satisfará todos os prejuízos acarretados para o consumidor?
3. Do transporte das bagagens dos usuários do transporte aéreo
Na Resolução 400/2016, observam-se três problemas cruciais envolvendo as bagagens dos passageiros, quais sejam: a eliminação da franquia existente; a modificação do prazo decadencial para reclamação; e a tentativa de limitação do valor da indenização em casos de extravio ou violação do conteúdo transportado. As normas que disciplinam tais hipóteses transgridem frontalmente a Lei 8.078/90, que, como elucubra Cláudia Lima Marques, encontra-se composta de normas de ordem pública, “a reconhecer a superioridade da lei em relação à autonomia da vontade do indivíduo”[3]. Constituem normas, ipso facto, “inderrogáveis pela ação da vontade do indivíduo, a regular de maneira imperativa e imediata as questões jurídicas que tratam”.
Com base no artigo 734 do Código Civil, o transporte de pessoas necessariamente engloba o próprio passageiro e a bagagem que traz consigo, demonstrando que, no ordenamento jurídico brasileiro, o traslado de tal instrumento consiste em prestação imanente ao contrato. A impropriedade jurídica da extinção da franquia para as bagagens foi tão premente que o Ministério Público Federal, em sede de ação civil pública, obteve, inicialmente, êxito quanto à suspensão dos seus efeitos com o escopo de resguardar os interesses e direitos dos consumidores.
Outra disposição arbitrária presente no artigo 17 da resolução corresponde à exigência de que o passageiro apresente declaração todas as vezes que a bagagem contenha itens que supere o limite de indenização de 1.131 DES. Ora, primeiro, o consumidor, em regra, por sua reconhecida vulnerabilidade técnica e informacional, sequer tem conhecimento do que consiste o direito especial de saque; segundo, não possui, normalmente, plenas condições de avaliar, especificamente, o valor dos itens que serão transportados.
A tentativa de isenção de responsabilidade do transportador aéreo presente nos artigos 32 e 34 manifesta-se evidente, uma vez que prevê que o simples recebimento da bagagem despachada constitui presunção de que foi entregue em bom estado quando o passageiro não protesta. Nesse mesmo viés, estabelece a possibilidade de eliminação da indenização para os danos acarretados a itens frágeis e impõe que, em casos de violação da bagagem ou avaria, o interessado questione a situação no prazo de sete dias.
Quanto ao extravio de bagagem, os prazos para restituição de sete ou 21 dias, tratando-se, respectivamente, de voos domésticos ou internacionais, não significam que o consumidor não deva ser indenizado ao ter aguardado para a entrega dos seus pertences. Nota-se ainda que, no caso de a bagagem não ser localizada, o parágrafo 3º, incisos I e II, do artigo 34, contempla norma prejudicial ao consumidor, visto que aduz que o ressarcimento de despesas poderá ser deduzido dos valores pagos a título de indenização final. Não se poderá jamais olvidar que o CDC, no artigo 6º, inciso VI, resguardou como direito básico do consumidor a reparação integral dos danos sofridos.
Conclusão
A análise econômica dos resultados das normas jurídicas constitui uma importante faceta da contemporaneidade e contribui para que se possa ter uma noção ampla dos fenômenos decorrentes da aplicação do Direito. Alegam as empresas prestadoras dos serviços de transporte aéreo de passageiros que a novel arquitetura das condições gerais editada pela Anac contribuirá para a redução do custo final dos bilhetes e a intensificação da concorrência. Contudo, de acordo com o princípio da vedação do retrocesso social, devem prevalecer as normas que protegem os interesses e direitos dos consumidores, consagradas nos planos constitucional e legal. Nessa senda, a resolução em epígrafe deverá ser interpretada e aplicada em consonância com a Lei 8.078/90.
[1] Sobre o contrato de transporte aéreo de passageiros, consultar: TAPIA, Belen Ferrer. El Contrato de Transporte Aereo de Pasajeros. Sujetos, Estatuto y Responsabilidad. Madri: Tecnos, 2015; THEODORO JÚNIOR. Humberto Theodoro. Do Transporte de Pessoas no Novo Código Civil. Revista dos Tribunais, vol. 807/2003, p. 11 – 26, jan. 2003; VALDIVIA, Ricardo Rueda. La responsabilidad del transportista aéreo en la Unión Europea. Granada: Ed. Comares, 2002.
[2] Com relação ao contrato de transporte aéreo de passageiros, tratam do tema: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Contrato de transporte de pessoas e o novo Código Civil. In: PEREIRA, Antônio Celso Alves; MELLO, Carlos Renato Duvivier de Albuquerque (org.). Estudos em homenagem a Carlos Alberto Menezes Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; ALMEIDA, Carlos Alberto Neves. Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo. Coimbra: Almedina, 2010.
[3] MARQUES, Cláudia Lima. A Responsabilidade do Transportador Aéreo pelo Fato do Serviço e o Código de Defesa do Consumidor. Antinomia entre Norma do CDC e de Leis Especiais. Revista de Direito do Consumidor, vol. 3/1992, jul.- set. 1992, p. 160. Cf. também: BENJAMIN, Antonio Herman V. O transporte aéreo e o Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, n. 26. São Paulo: Revista dos Tribunais. abr.- jun., 1998. p. 33-44.