Enfrentamento ao trabalho escravo tem avanços antigos e retrocessos recentes
A Lei 12.064/2009 instituiu 28 de janeiro como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data foi escolhida em homenagem aos auditores-fiscais do trabalho Eratóstenes de Almeida, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e ao motorista Ailton Pereira de Oliveira, vítimas de homicídio quando investigavam trabalho escravo em Unaí (MG). Nesta semana que se inicia, serão realizados eventos que relembrem o triste fato e que possibilitem a reflexão das instituições públicas e da sociedade sobre a prática da exploração do trabalho escravo no país.
Em minha reflexão, vejo que o Brasil, nos últimos 20 anos, tem dado respostas ao problema com vigor e determinação. Tudo se iniciou em 1995, com a criação do Gertraf (Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado), em contexto em que as autoridades governamentais manifestavam-se em documentos escritos utilizando, preferencialmente, o termo “trabalho forçado”.
Hoje, “trabalho escravo” ganhou status constitucional, por força da Emenda 81/2014, que prevê a expropriação de propriedades urbanas e rurais onde houver sua exploração. Ao longo dos anos, diferentes instituições governamentais, organizações de empregadores e de trabalhadores, entidades da sociedade civil, a mídia, a Academia, entre outros, envolveram-se no tema. Muitas das medidas tomadas são criativas e únicas, mostrando a necessidade de dar passos ousados para lidar com a severa violação de direitos humanos.
Se tivesse que escolher algumas ocorrências dos últimos anos, pelo grau de importância, mencionaria as seguintes: a) caso José Pereira; b) criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE); c) alteração do art. 149 do Código Penal; d) criação do cadastro de empregados que submeteram trabalhadores a condições análogas à de escravo, também conhecido como lista suja.
a) José Pereira foi quase morto, no Sul do Pará, por tentar fugir de uma fazenda onde era escravizado. O Estado brasileiro omitiu-se em cumprir suas obrigações de proteção dos direitos humanos, de proteção judicial e de segurança no trabalho e, por isso, foi apresentada uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1994. Após anos de tramitação, o governo brasileiro reconheceu sua responsabilidade diante do caso, prontificando-se a assinar Acordo de Solução Amistosa, no qual, entre outros compromissos, reconheceu publicamente a responsabilidade acerca da violação de direitos e se comprometeu a prevenir a prática do trabalho escravo. Foi a partir dessa denúncia que diferentes países e segmentos da sociedade brasileira reconheceram a existência, a gravidade e as particularidades do trabalho escravo no país.
Hoje, o Brasil é novamente acionado internacionalmente, relativamente ao caso Fazenda Brasil Verde. O processo está em fase mais avançada porque já submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez frustrados os esforços visando à composição. O tribunal poderá condenar o Estado brasileiro pela existência de trabalho escravo, por não preveni-lo e por violar o dever de investigar e punir esse tipo de violação.
b) O Grupo Móvel é composto por auditores-fiscais do trabalho, em parceria com Procuradores do Trabalho e da República, bem como agentes da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. Em duas ocasiões distintas, pude constatar a importância da atuação deles. Na primeira, quando estava nas trincheiras, na saudosa Marabá/PA, ocasião em que analisei dezenas de processos criminais pela prática do crime do art. 149 do Código Penal. Constatei pessoalmente quão eficiente, resolutiva e notável era a atuação do Grupo Móvel. Eles conseguiam fazer algo essencial para o bom funcionamento do sistema de justiça criminal brasileiro: eliminar o inquérito policial. Os relatórios de fiscalização, dotados de fotografias, depoimentos e documentos, serviam de base para o oferecimento de denúncias pelo Ministério Público Federal e permitiam que menos tempo se gastasse na longa fase que antecede a acusação criminal. A segunda ocasião foi quando participava do Tercer encuentro nacional sobre la trata de personas, realizado no final de 2015 na Colômbia. Percebi como os colombianos ressentiam-se de não ter um grupo de auditores tão atuante como o existente no Brasil. Muitos dos problemas por eles alegados, sobretudo o resgate de trabalhadores, seria solucionado se adotassem nossa estratégia.
Hoje contamos com apenas quatro grupos móveis para combater uma prática que não deu sinais de diminuição, ao passo que, no início da década de 2000, havia oito grupos de auditores-fiscais. Talvez a redução havida tenha relação com os mais de 1000 cargos dessa carreira que estão vagos no país.
c) O Código Penal previa, desde 1940, o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Em 2003, o delito foi alterado e ganhou grande abrangência. Não conheço todas as legislações do mundo, mas acredito que nenhum país possui conceito de trabalho escravo tão amplo. Nem mesmo a Austrália avançou tanto, apesar de a High Court ter julgado o caso The Queen v. Wei Tang,[1] em que começou a desenvolver jurisprudência com base na moderna concepção de escravidão, que não exige trabalho forçado, nem se atém ao conceito de lock and key (fechadura e chave). Entre nós, a partir de 2003, temos dois tipos de trabalho escravo: com ou sem restrição da liberdade de locomoção. Trabalho com jornada exaustiva ou em condições degradantes caracteriza o crime sem que exista privação da liberdade. Por sua vez, há restrição da liberdade na submissão a trabalhos forçados; em razão de dívida contraída com o empregador; na proibição de usar qualquer meio de transporte por parte do trabalhador; e devido à vigilância ostensiva no local de trabalho ou à retenção de seus documentos ou objetos pessoais. Normalmente, a prática do crime ou se dá pela condições degradantes e/ou jornada exaustiva ou pela servidão por dívida.
Hoje, a definição legal de trabalho escravo é atacada por todos os lados.
Sob o pretexto de regulamentar a EC n. 81/2014, que demorou mais de uma década para se converter em realidade, o Projeto de Lei do Senado n. 432/2013, que tramitava sob regime de urgência para aprovação, visa a excluir a jornada exaustiva e as condições degradantes da definição de trabalho escravo. Na mesma toada, o Projeto de Lei da Câmara n. 3.842/12 altera o próprio art. 149 do Código Penal, a fim de, no mesmo sentido, eliminar essas modalidades.
Como consta do manifesto encabeçado pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG (www.clinicatrabalhoescravo.com), “a retirada da jornada exaustiva e do trabalho em condições degradantes do tipo penal brasileiro representa retrocesso na proteção de direitos historicamente conquistados”.[2] Se o Brasil está na vanguarda mundial ao tutelar amplamente o trabalho decente, com a mudança, corre o risco de passar ocupar o último posto, ao lado de China e Índia, países que preveem as menores penas para a escravidão. Permitir que o trabalhador divida a água de beber com o gado, durma durante meses em barracas de taipa ou lona, trabalhe 15 horas por dia em fornos de carvão e faça suas necessidades fisiológicas no mato não mais deve ser punido? Por mais de uma década, tem sido considerado inadmissível submeter trabalhadores a condições degradantes ou a jornada exaustiva. Mudaram-se os costumes, como na descriminalização do adultério? Mudou-se a percepção de pobreza/desemprego, como quando se descriminalizou a vadiagem? É difícil explicar o que mudou na última década para justificar a pretendida mudança do art. 149.
Além disso, se for exigida sempre a restrição da liberdade para caracterizar o crime, teremos uma das penas mais brandas do mundo. A escravidão na França é punida com pena privativa de liberdade de 7 a 20 anos;[3] os Estados Unidos punem com 20 anos;[4] Itália, 8 a 20 anos;[5] Reino Unido, prisão perpétua.[6] A pena mínima de 2 anos prevista no art. 149 considera justamente as condições degradantes e a jornada exaustiva que, embora reprováveis, representam forma mais branda de redução à condição de escravo. Para as formas mais graves – com privação da liberdade – as penas deveriam ser proporcionalmente mais elevadas. Resta saber se seguiremos o modelo de Índia[7] e China,[8] cujas sanções equivalem a 1 ano e 3 anos, respectivamente, ou se adotaremos o modelo europeu.
Justificar a eliminação com o argumento de que o conceito de condições degradantes mostra-se abstrato e de difícil assimilação é — perdoem-me — balela. Como vários elementos normativos existentes no Código Penal, é mais uma expressão cujo conteúdo deve ser preenchido pelo intérprete. Não é muito mais difícil do que extrair o conceito de “decoro” e “dignidade” (artigo 140), “sem justa causa” (artigo 153) e “ato obsceno” (artigo 234).
Já ouvi dizer que o auditor-fiscal disse que a pequena espessura do colchão, a estreita dimensão da cama e a falta de armário para os empregados são condições degradantes. Claro que não são, e qualquer leigo sabe disso. A não ser que surjam concomitantemente com a água poluída servida aos trabalhadores, a comida estragada que consomem, a pernoite debaixo de barraca de palha ou ao relento. Falo de minha experiência, pois, nas dezenas de processos criminais que julguei, nunca tive dificuldade em reconhecer o que são condições degradantes de trabalho. É como aquela decisão do juiz Potter Stewart da Suprema Corte americana, quando se discutia a diferença entre arte e pornografia. “Eu não sei definir pornografia, mas não tenho nenhuma dúvida do que seja quando a vejo”.[9]
Não é preciso reduzir o conceito de trabalho escravo para retirar a efetividade da EC 81/2014. Ela já está esvaziada quando se condiciona a expropriação ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, sabendo-se que os processos criminais no Brasil não têm fim. Basta lembrar que o crime que deu origem às homenagens do dia 28 de janeiro ocorreu há 12 anos e houve até agora apenas o julgamento em primeiro grau, já objeto de recurso e que certamente passará por outras instâncias e sobreviverá por sucessivos lustros. E depois dizem que o amor é que não tem fim…
As pretendidas alterações legislativas transmitem mensagem clara: amenizar a repressão de quem superexplora o trabalhador. E o Brasil correndo risco de ser condenado pela Corte Interamericana por proteção insuficiente…
d) Originalmente instituída pelas Portarias 1.234/2003 e 540/2004 do MTE, e posteriormente convertida na Portaria Interministerial n. 2/2011 do MTE/SDH, a lista suja foi criada para divulgar os nomes de empresas e pessoas físicas autuadas pelo uso do trabalho análogo ao escravo. Desde sua criação, essa relação vem sendo utilizada por bancos públicos e privados, empresas nacionais e internacionais que operam no Brasil e até mesmo importadoras de produtos brasileiros para controlar o compromisso com suas cadeias produtivas. Se produtores de carvão aparecem na lista, por exemplo, as grandes empresas automobilísticas e de eletrodomésticos podem garantir que o aço que consomem não utiliza o produto daqueles fornecedores. A divulgação da relação de nomes não obriga nenhuma instituição a agir para aplicar punições ou negar contratos e empréstimos a quem aparece na lista. No entanto, o fortalecimento do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, a partir de 2005, fez com que as principais empresas e bancos do país aderissem a este compromisso. Assim, a lista suja dificulta aspecto vital à atividade econômica: obtenção de crédito e participação no mercado.
Hoje, a lista suja está suspensa por decisão liminar do STF. Para tentar contornar as imperfeições detectadas pelo tribunal — inexistência de lei formal e impossibilidade de ampla defesa — uma nova lista foi editada pelo MTE e a Secretaria de Direitos Humanos. É a portaria 2 de 31 de março de 2015, que procura explicitar procedimentos e instâncias a serem acionadas pelos advogados do empregador acusado por trabalho escravo. Quanto à falta de lei formal, no Brasil, ausência de lei nunca foi problema. Temos, além da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), a Lei 13.249/2016, que instituiu o Plano Plurianual 2016-2019. O Anexo I prevê, em seu objetivo número 974, sistema de informações e indicadores sobre trabalho escravo (Iniciativa 068G) e sistema eletrônico de monitoramento das ações do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (068H), que, por sua vez, impõe a manutenção do cadastro (Ação 57).[10] Todas essas leis fazem o óbvio, pois dispõem sobre a necessidade de dar publicidade aos atos da Administração. Lei deveria haver para restringir a publicidade, focando nas exceções constitucionalmente prescritas. Posto que a lista suja traga severas consequências econômicas ao empregador flagrado explorando trabalho escravo, o mais importante é que lhe seja assegurada ampla defesa em âmbito administrativo. Assegurado este direito, a divulgação do resultado do procedimento mereceria publicidade irrestrita, como tudo que se produz na Administração Pública.
Concluindo minha reflexão, quando olho para trás, noto certa semelhança entre a política de enfrentamento ao trabalho escravo e a situação da economia brasileira. Muita coisa foi construída às duras penas nos últimos 20 anos. Não foram poucos os obstáculos desde o Plano Real, as conquistas sempre árduas e os fracassos superados pela vitória seguinte.
Hoje, o risco de perder essas conquistas é real, em grau tão acelerado que chega a ser difícil acreditar. Elevada taxa de desemprego, inflação anual de dois dígitos, aumento da dívida pública, falta de credibilidade dos investidores, queda do PIB. Tem-se a impressão de que a água escorre pelos dedos sem possibilidade de reter o líquido abundante neste verão. A única diferença que percebo é que não somos influenciados pela desaceleração da China, a baixa de preço das commodities, o preço internacional do petróleo e a alta dos juros nos Estados Unidos para conseguir manter o que já existe. No enfrentamento ao trabalho escravo, só dependemos de nós e de nossas instituições para impedir que os muitos avanços dos últimos 20 anos não se convertam em desalentado retrocesso.