Dono da boate Kiss quer danos morais de prefeito, promotor e bombeiros
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que, havendo dano causado por agente público no exercício de suas funções, deve-se conceder ao lesado a possibilidade de ajuizar ação diretamente contra este, contra o estado ou contra ambos. Animada com esse precedente, a defesa do empresário Elissandro Spohr, um dos sócios da boate Kiss, que pegou fogo há exatos três anos em Santa Maria (RS), ingressou na segunda-feira (25/1) com ação de danos morais contra o estado do Rio Grande do Sul, o município e o prefeito Cezar Schirmer (PMDB), o promotor de Justiça Ricardo Lozza, quatro servidores municipais e sete policiais da Brigada Militar envolvidos na ocorrência. Todos são acusados de jogar nas costas do empresário a culpa pela tragédia, omitindo-se de seus atos.
O incêndio foi causado por um artefato pirotécnico — que atingiu o revestimento de espuma — usado dentro da boate por um dos artistas que se apresentavam no palco, na noite de 27 de janeiro de 2013. Como consequência da tragédia, 242 pessoas morreram e 680 ficaram feridas.
O empresário, que responde ao processo em liberdade, quer 40 salários mínimos (R$ 35,2 mil) de indenização de cada agente citado na ação — totalizando R$ 528 mil. Se vencer a causa, a defesa diz que Spohr doará tudo para a Associação de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.
‘‘A negligência de cada um dos agentes públicos quase destruiu a vida do autor, ao fazer recair sobre ele, indevidamente, toda a responsabilidade pelas falhas que foram, em verdade, erros técnicos e administrativos, desídia e incompetência. Com todo o clamor público, para acalmar a sede de vingança da população, o autor foi preso, considerado ganancioso, cruel, leviano, irresponsável, foi eleito o culpado por tudo’’, afirma a defesa na ação.
Além da possibilidade jurídica acenada pelo STJ, o advogado Jader Marques disse que decidiu pedir as indenizações porque se esgotaram as possibilidades de incluir esses agentes públicos entre os réus processados criminalmente pela tragédia. É que o Ministério Público só ofereceu denúncia contra Spohr e o sócio Mauro Hoffman, além dos dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo e Luciano. Todos os demais funcionários públicos apontados no relatório policial foram deixados de fora da denúncia criminal.
Integridade moral
Segundo a ação, ‘‘embora tivesse seguido todos os ritos administrativos específicos e atendido a todas as exigências do Executivo municipal, dos bombeiros e do Ministério Público, o autor foi execrado perante opinião pública, e isso tudo aconteceu, como será provado, graças à negligência dos agentes do poder público’’. Essas situações, pontuou o advogado, atentaram contra a integridade moral do empresário.
Antes do incêndio, afirma, seu cliente era considerado um jovem e promissor empresário da noite, administrador de uma das mais requisitadas casas noturnas de Santa Maria. Hoje, Spohr é persona non grata no Rio Grande no Sul e, em especial, na cidade de Santa Maria, porque operava economicamente com uma estrutura que, depois do episódio, foi julgada inadequada pela polícia, pelos órgãos de fiscalização e pelo Ministério Público.
Entretanto, rebate o advogado, a Kiss não foi construída pelo seu cliente — nem o prédio nem o interior da casa. O autor entrou na administração da boate apenas no segundo semestre de 2010. À época, garante, havia alvará de localização e dos bombeiros já concedidos. Posteriormente, os alvarás e as licenças foram renovadas, e a casa foi adequada às exigências formuladas por todos os réus.
‘‘Caso seja verdade que a boate Kiss nunca deveria ter recebido Alvará de Localização e Funcionamento, Licença de Operação e alvará de bombeiros, então é fundamental que se diga que foi exatamente a concessão desses alvarás que convenceu o autor a entrar na administração da casa noturna com segurança’’, diz o criminalista. Ou seja, a responsabilidade é do poder público, segundo ele, pois foi por causa da legalidade desses atos administrativos que o empresário não só adquiriu o empreendimento como fez uma série de modificações — e todas com o conhecimento dos entes públicos arrolados na ação.
A conduta de cada agente
Na ação protocolada na 1ª Vara Cível Especializada da Fazenda Pública de Santa Maria, o advogado Jader Marques discrimina a conduta dos dois principais agentes públicos: o prefeito santa-mariense, Cezar Schirmer, e o promotor de Justiça Marcelo Lozza, que já foi alvo de outro processo.
Conforme a inicial, o prefeito, que sempre alegou desconhecer a situação estrutural e documental da boate, agiu com negligência quando respondeu ofício ao promotor, assinalando atraso na documentação da boate. Apesar disso, deixou de tomar as medidas cabíveis no caso. ‘‘A sua omissão foi fundamental para dar ares de legalidade ao ato administrativo equivocado, sendo evidente que estava plenamente ciente das condições da empresa, dos prazos de alvará, da pendência de pedidos de renovação e, como gestor público com dever de agir, jamais operou para que a situação se resolvesse’.’
Marques diz que o agente do Ministério Público, com sua negligência, foi um dos maiores responsáveis pelo fato da boate continuar a promover festas. A seu ver, Lozza não observou a documentação que lhe foi remetida pelos órgãos responsáveis pela fiscalização. Caso contrário, teria percebido que o alvará concedido pelo Corpo de Bombeiros vencia em agosto de 2012; ou seja, expirou enquanto ainda tramitava o inquérito civil. Também deveria ter exigido a elaboração do novo Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio ou a comprovação de sua renovação.
O mais grave, na percepção do advogado do empresário, foi que Marcelo Lozza permitiu que a casa funcionasse durante o andamento das obras quando firmou o Termo de Ajustamento de Conduta. ‘‘O TAC é sinalagmático; ou seja, o réu também fez constar que atuaria na fiscalização das obras, o que envolve, obviamente, tudo o que diga respeito à reforma estrutural realizada. Em especial, era do promotor Lozza o dever, conforme cláusula oitava, de fiscalizar o cumprimento do acordo. As madeiras e a espuma foram colocadas na boate Kiss durante o inquérito e fizeram parte das obras referentes à acústica, porque foram medidas tomadas para resolver o problema que era objeto principal do TAC.’’
Notícia-crime arquivada
Não foi a primeira vez que a defesa do empresário tentou responsabilizar o promotor de Justiça por negligência na condução do inquérito civil público que investigou a poluição sonora em seu estabelecimento. Na notícia-crime que ofereceu ao Órgão Especial do TJ-RS — que tem a competência de julgar entes públicos —, Spohr sustentou que a colocação das espumas na boate estava diretamente vinculada ao TAC firmado em decorrência do inquérito.
O inquérito, porém, não foi analisado. O parecer do procurador-geral de Justiça à época, Eduardo de Lima Veiga, “não conheceu” do pedido “em razão da ilegitimidade do requerente para manejá-lo”.
Ao analisar o caso, o relator, desembargador Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, considerou que, tendo a autoridade competente solicitado o arquivamento do expediente, não caberia ao Tribunal de Justiça reexaminar tal posição.