Um fio condutor entre Stalingrado e a batalha por Brasília
A batalha de Stalingrado, ocorrida às margens do rio Volga entre 17 de julho de 1942 e 2 de fevereiro de 1943, decidiu os rumos da Segunda Guerra Mundial, marcando um ponto de virada favorável aos russos, já que, desde o início da operação Barbarossa, o exército vermelho se encontrava na defensiva contra as estratégias da blitzkrieg utilizada pelos alemães. No início da ocupação, a Alemanha buscava uma invasão rápida da URSS para destruir o regime stalinista e, ao mesmo tempo, apropriar-se das riquezas naturais para alimentar sua indústria bélica. Os primeiros momentos da invasão da URSS foram positivos para os nazistas e indicavam que Hitler rapidamente alcançaria o controle do leste europeu. Contudo, a partir da batalha de Stalingrado, a resistência do povo russo mudou completamente o sentido da Segunda Guerra Mundial, ao impor uma grande derrota ao exército alemão e, logo em seguida, colocar de joelhos o regime nazista.
Porém, diante do stalinismo, qual era o sentido da resistência russa à ocupação nazista? O povo lutava pela liberdade? Lutava contra a opressão? Os Gulags russos eram diferentes dos campos de concentração alemães? Todos esses questionamentos surgem na obra-prima de Vassili Grossman,Vida e destino, a partir de reflexões que o autor faz sobre o sentido perverso do totalitarismo na vida do indivíduo[1]. É por isso que, logo no início do romance, Grossman faz a seguinte observação: “Em mais de um milhão de isbás russas de aldeia, não há, e nem pode haver, duas que sejam exatamente iguais. Tudo o que vive é único. É impensável que sejam idênticas duas pessoas ou duas roseiras… Onde tentam, à força, fazer desaparecer suas singularidades e peculiaridades, a vida se extingue”[2].
Por avançar sobre um tema que atingia o coração do regime bolchevique, o romance de Grossman acabou apreendido em 1960 pela polícia política soviética e somente foi libertado definitivamente em 2013. O longo tempo em que os escritos de Grossman ficaram atrás das grades, sob o controle da antiga KGB, demonstra que a vitória sobre os nazistas não pode simplesmente ser descrita como o triunfo da liberdade sobre a opressão. Ao narrar a tragédia que se abateu sobre o povo russo, tanto por meio do totalitarismo stalinista como também pelo totalitarismo nazista, Grossman descreve o duro destino dos indivíduos oprimidos pelo Estado. Não havia espaço para liberdade. Tudo era absorvido pelas mãos fortes do Estado. Esse abatimento generalizado é narrado por Grossman por meio dos sofrimentos que atingem o eixo das famílias Chápochnikov-Chtrum. A situação das duas famílias é uma representação do poder de destruição do totalitarismo sobre a vida de pessoas comuns, que, a duras penas, tentavam sobreviver dentro de um regime ditatorial. A intolerância e a violência atingem os personagens do livro por todos os lados. Os que se encontram presos nos Gulags comunistas vivenciam as mesmas experiências daqueles que se encontram presos nos campos de concentração nazistas. Não existe espaço para o otimismo em nenhum momento do livro, pois o povo russo se encontrava na condição absurda de não poder fugir para nenhum dos lados. A derrota do exército vermelho significaria a consagração de Hitler. Por outro lado, a vitória do povo russo significaria a consagração de Stalin. Não havia saída. Independentemente do resultado da guerra, a liberdade seria a grande derrotada.
As semelhanças entre os totalitarismos soviético e nazista são bem analisadas por Grossman na passagem em que um velho bolchevique, preso num campo de concentração, é levado para um interrogatório perante um oficial da SS. O velho bolchevique, chamado Mikhail Mostovskói, havia participado da Revolução de 1917 e, mesmo após o terror do stalinismo, ainda mantinha a fé no partido e no comunismo. Já o oficial da SS, responsável pela administração do campo de concentração, chamava-se Liss e, como teórico do partido, sempre havia se interessado principalmente por discussões no âmbito da Filosofia e da História. Ao longo do diálogo, o Sturmbannführer Liss vai demonstrando as várias semelhanças existentes entre os dois militantes, ao ponto de afirmar que, “nossas mãos (nazistas), assim como as suas (comunistas), gostam de trabalhar, e não têm medo de sujeira”[3]. É claro que, no plano ideológico, o internacionalismo comunista e o nacionalismo racista dos nazistas eram antípodas. Enquanto a utopia comunista buscava uma igualdade absoluta[4], a utopia nazista desejava retomar um passado “glorioso” do povo alemão. Uns tinham fé no progresso da humanidade, outros sonhavam com o retorno ao mundo antigo. No entanto, ambos tinham em comum a crença de que qualquer ato de violência e intolerância era válido na busca dos objetivos políticos. Dessa forma, segundo o oficial da SS, o ódio entre comunistas e nazistas não era capaz de ocultar as semelhanças entre os dois, pois, “quando olhamos um no rosto do outro, não olhamos só para um rosto que odiamos; olhamos para um espelho. Essa é a tragédia da nossa época. Vocês não reconhecem em nós a sua vontade? O mundo para vocês não é feito de uma vontade que ninguém pode deter ou abalar?”[5].
Enquanto o nazismo gerou o holocausto, prendeu e assassinou seus opositores, eliminando inclusive setores do próprio partido que ameaçavam o poder absoluto de Adolf Hitler, como ocorreu na famosa noite dos longos punhais com o brutal assassinato das lideranças da SA; o comunismo fez a violenta coletivização das terras, por meio do assassinato e expulsão dos camponeses e, em 1937, prendeu, condenou e executou diversos bolcheviques que haviam participado da revolução de 1917, como Kamenev, Zinoviev e Bukharin, completando sua obra em 1941, com o assassinato de Trótsky, no México. Na perspectiva dos dois movimentos políticos, os fins justificavam os meios e, portanto, nada poderia paralisar seus militantes diante dos objetivos a serem alcançados. Não havia limites, pois tudo era permitido. Dessa forma, o povo russo se encontrava diante da seguinte alternativa: ou morrer pelas mãos de Hitler ou morrer pelas mãos de Stalin.
A condição do povo russo, que resistiu ao nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, não é diferente do estado de espírito dos democratas que assistem assustados ao desenrolar da crise política brasileira. Cenas de ódio, intolerância, constantes violações do Estado de Direito pela operação “lava jato”[6], acompanhados de um processo de impeachment sem qualquer fundamento constitucional[7], estremecem as estruturas institucionais da recente democracia brasileira. Uma rápida olhadinha nas fotos que retrataram o desembarque do PMDB do governo confirma o que estou dizendo. A situação é preocupante! No entanto, do outro lado da trincheira, caso o governo consiga derrotar um impeachment sem qualquer fundamento constitucional na Câmara dos Deputados, sua articulação política dependerá de partidos que estão apenas interessados em ocupar os espaços deixados pelo PMDB.
Não existe qualquer discussão programática para debater os principais problemas do país. Falar em reformas estruturais, como as reformas agrária, tributária e política e a democratização dos meios de comunicação etc., que, no caso, seriam fundamentais para o aprofundamento da democracia, acabam passando longe do debate travado entre oposição e governo. Semelhantemente aos soldados russos que resistiram ao nazismo, os democratas brasileiros vêm se opondo ao impeachment por meio da defesa das regras constitucionais, mas, ao mesmo tempo, percebem que a trincheira do governo é composta de setores tão retrógrados quanto os da oposição, não oferecendo, portanto, uma perspectiva muito promissora para o aprofundamento da democracia. Basta lembrar que o presidente do Senado, que é contrário ao impeachment, não é melhor do que o presidente da Câmara dos Deputados, que é favorável ao impeachment. Nesse sentido, para quem deseja ampliar a democracia brasileira, olhar para a trincheira da oposição e para a trincheira do governo dá a sensação de que existem apenas duas opções: ou morrer pelas mãos de Stalin ou morrer pelas mãos de Hitler.
O sistema político brasileiro procurou, durante a maior parte de sua história republicana, impor-se como demiurgo da sociedade, na tentativa de sufocar a atuação dos movimentos sociais. Essa situação é responsável pelo déficit de cidadania ainda presente na sociedade brasileira, já que, mesmo após a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, os movimentos sociais ainda encontram dificuldades para fazer com que suas reivindicações sejam ouvidas pelas estruturas de poder do Estado. O sistema político se encontra blindado em relação aos movimentos sociais, ao distanciar cada vez mais os representantes políticos das pessoas comuns. Essa situação é apontada por Marcos Nobre em seu livro Imobilismo em Movimento, ao utilizar um novo conceito para compreender o modus operandi do sistema político brasileiro. Segundo ele, após a redemocratização, o sistema político passou a operar de forma autônoma em relação à sociedade, buscando arrefecer os conflitos sociais e as disputas políticas que ocorrem naturalmente numa democracia. Esse fenômeno foi denominado por Nobre como “peemedebismo”[8].
Nesse sistema político, dominado pelo peemedebismo, as pautas reivindicatórias de setores marginalizados da sociedade brasileira não encontram ressonância. São sufocadas prematuramente por grupos de pressão que alcançam maioria entre os parlamentares, impedindo, dessa forma, que as minorias consigam debater suas posições dentro do sistema político. Ou seja, a redemocratização não foi capaz de abrir por completo as instituições políticas brasileiras, pois manteve um grau significativo de blindagem do sistema político em relação à sociedade.
Desse modo, é possível afirmar que a democracia brasileira continua pouco democrática no funcionamento de seu sistema representativo. Segundo Octavio Ianni, “modernizam-se a economia e o aparelho estatal. Simultaneamente, os problemas sociais e as conquistas políticas revelam-se defasados. […] A mesma nação industrializada, moderna, conta com situações sociais, políticas e culturais desencontradas”[9]. Um desencontro intencional que, ainda segundo as palavras de Ianni, pertence ao próprio modelo de modernização capitalista seguido pelo Brasil, que contribuiu para cristalizar o modo conservador de lidar com os conflitos sociais.
Em A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, esse caráter autoritário do sistema político brasileiro aparece como traço marcante de uma das maiores tragédias ocorridas após a proclamação da República, que foi a Guerra de Canudos. Um movimento messiânico malcompreendido, formado por pessoas que viviam à margem da sociedade e que sofriam cotidianamente com a seca e com a violência, ora do policial (os volantes), ora do banditismo local (o cangaço e os jagunços a serviço do latifúndio), é duramente sufocado pelo Exército brasileiro. A partir dessa tragédia, o romance retrata alguns elementos fundamentais na organização da jovem República e na implementação de um projeto autoritário de construção da nação, percebidos no idealismo militar do coronel Moreira Cesar e, também, na presença do poder tradicional e personalista de personagens como o Barão de Canabrava, líder dos monarquistas, e de Epaminondas Gonçalves, principal representante do partido republicano. Se no primeiro caso temos um representante do projeto positivista de uma ditadura militar — tanto que Moreira Cesar foi um grande aliado de Floriano Peixoto —, os dois últimos personagens representam o velho estilo com que as elites brasileiras sempre procuram sequestrar a agenda política, ao tratar os assuntos públicos como questões pertencentes à esfera doméstica. Pois foi nesse sentido que o Barão de Canabrava e Epaminondas Gonçalves, antigos adversários políticos, organizaram a “nova” ordem política na Bahia após um duro entfrentamento. Nas palavras do primeiro, “[…] é hora de fazer as pazes, Epaminondas. Esqueça as divergências jacobinas […]. Assuma o governo e defendamos juntos, nesta hecatombe, a ordem civil”[10].
Nesse sentido, sem se deixar contaminar pela explosão de paixões ideológicas, que, muitas vezes, vem acompanhada de comportamentos agressivos e intolerantes, é preciso deixar claro que os movimentos sociais precisam ir muito além do que os partidos de oposição e governo oferecem para eles dentro do sistema político tradicional. A oposição, ainda magoada com a derrota sofrida em 2014, insiste em derrubar o governo por meio de um impeachment sem fundamento. Não foi capaz, até agora, de apresentar um projeto alternativo e consistente para o país. Sua base é formada por acordos nada republicanos com os mesmos atores de sempre da política tradicional. Do outro lado, o governo se encontra completamente perdido desde que venceu as eleições e não consegue apresentar algo novo, no sentido de avançar nas reformas estruturais tão importantes para a ampliação da democracia brasileira. Independentemente do resultado dessa disputa insana, os dois lados estão completamente afastados dos anseios populares. Ambos estão apegados às engrenagens tradicionais de poder. Assim, voltamos à condição dos soldados russos na batalha de Stalingrado. De um lado, Adolf Hitler, do outro, Stalin. É por isso que o oficial da SS, Sturmbannführer Liss, no diálogo com o velho bolchevique, Mikhail Mostovskói, afirma de maneira muito lúcida que, “nós (nazistas) somos odiados, enquanto a humanidade inteira olha para vocês (comunistas) em Stalingrado com esperança? Que nome vocês dão para isso? Absurdo! Não há diferença! Ela foi inventada”[11].
[1] Nesse sentido, ver o excelente artigo de Rafael Tomaz de Oliveira sobre o texto de Vassili Grossman: Literatura de Grossman mostra como não há um monopólio da maldade. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-nov-15/diario-classe-literatura-grossman-mostra-nao-monopolio-maldade.
[2] GROSSMAN, Vassili. Vida e Destino. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014, p. 25.
[3] GROSSMAN, Vassili. Vida e Destino. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014, p. 418.
[4] Sobre o autoritarismo presente em qualquer projeto político que se coloca na busca pelo absoluto, ver a crítica de Ernilo Stein ao socialismo em:Órfãos de Utopia: A Melancolia da Esquerda. 2ª ed., Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1996.
[5] GROSSMAN, Vassili. Vida e Destino. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014, p. 418.
[6] Lenio Streck escreveu diversas colunas apontando as constantes ilegalidades praticadas pelo juiz Moro, no âmbito da operação “lava jato”:http://www.conjur.com.br/2016-mar-31/senso-incomum-moro-criou-tipo-extincao-punibilidade-pedido-desculpas; http://www.conjur.com.br/2016-mar-24/senso-incomum-juiznao-socio-ministerio-publico-nem-membro-policia-federal; http://www.conjur.com.br/2016-mar-21/lenio-streck-escutas-juristas-revelam-moristas-moro; e http://www.conjur.com.br/2016-mar-11/streck-pedido-prisao-lula-torturou-marx-hegel-nietzsche.
[7] Nesse sentido, ver os seguintes pareceres contrários ao impeachment: Marcelo Neves. Disponível em:http://naovaitergolpe.org/2015/12/07/marcelo-neves-unb-da-parecer-contrario-a-impeachment/. Gilberto Bercovici. Disponível em:http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2015/10/Parecer_Impeachment_Bercovici.pdf.
[8] Apesar desse conceito fazer referência direta ao PMDB, Nobre destaca que o fenômeno do peemedebismo não se reduz somente a esta organização partidária, mas é utilizado em sua obra para explicar o funcionamento do sistema político brasileiro. Nesse sentido, ver: NOBRE, Marcos. Imobilismo em Movimento: da Abertura Democrática ao Governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[9] IANNI, Otavio. Pensamento Social no Brasil. Bauru, SP: Edusc, 2004, pp. 120-121.
[10] LLOSA, Mário Vargas. A Guerra do Fim do Mundo. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2008, p. 378.
[11] GROSSMAN, Vassili. Vida e Destino. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014, pp. 424-425.