Aumento do Fundo de Pobreza não pode ser refletido no Rio Têxtil
Ao finalizar a minha coluna anterior, sobre a ilegalidade e inconstitucionalidade da nova Lei Noel, que, pela segunda vez, determinou a incidência do ICMS na extração do petróleo ocorrida em território fluminense, alertei para o fato de que o estado do Rio de Janeiro enfrenta graves problemas orçamentários causados não só pela queda da arrecadação dos royalties do petróleo, cujo preço atingiu patamares de queda inimagináveis, como também pela diminuição da arrecadação de tributos que decorre da crise econômica de proporções inéditas pela qual passamos.
Também sustentei que essas razões fundamentam a necessidade absoluta de que o estado do Rio de Janeiro busque soluções das quais decorram o urgente equilíbrio das suas contas, mas ponderei que é preciso ter cuidado com os meios escolhidos, para que, com a edição de normas tributárias que não sejam condizentes com os mandamentos constitucionais aplicáveis, o estado não acabe por criar ambiente de absoluta insegurança jurídica para os contribuintes fluminenses.
Nesta coluna, tratarei de outra recente norma estadual que, a meu ver, acende a luz amarela a que mencionei acima.
Refiro-me ao Decreto 45.607, de 21 de março de 2016, que, em razão do aumento da alíquota do Fundo Estadual de Combate à Pobreza e às Desigualdades Sociais (FECP), de 1% para 2%, promoveu acréscimo, também de um ponto percentual, na carga tributária a que estão submetidos os contribuintes optantes pelo regime especial de tributação denominado Rio Têxtil. De fato, por essa norma, a alíquota do ICMS a ser recolhida por tais contribuintes passou de 2,5% para 3,5%.
Tanto as normas do FECP quanto as relativas ao Rio Têxtil já tiveram a sua constitucionalidade questionada perante o Supremo Tribunal Federal.
No que concerne ao FECP, todos se lembram de que ele guarda fundamento nos artigos 82 e 83 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), segundo os quais os estados e o Distrito Federal poderiam criar o referido fundo, cujo financiamento seria feito por meio da criação de adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do ICMS incidente sobre os “produtos e serviços supérfluos”, assim definidos por lei federal.
Como a Lei 4.506, de 30 de dezembro de 2002, com alterações posteriores, instituiu o referido fundo no Rio de Janeiro sem que tivesse sido editada a lei federal definidora dos produtos considerados supérfluos, sobre os quais poderiam ser criados os adicionais de ICMS destinados ao seu financiamento, e ainda determinou, para algumas hipóteses (por exemplo, operações com energia elétrica), a aplicação da alíquota de 5% (superior, portanto, à alíquota máxima de 2% prevista constitucionalmente), contribuintes fluminenses ingressaram em juízo buscando ver declarada a inconstitucionalidade da exação.
Contudo, essa discussão perdeu fundamento por ter a Emenda Constitucional 42, de 19 de dezembro de 2003, suprimido a exigência de prévia lei federal e, ainda, convalidado os adicionais criados em desacordo com as normas constitucionais então em vigor.
Apesar de se tratar de caso de flagrante e desaconselhável constitucionalidade superveniente, o STF, em precedentes de ambas as turmas, considerou boa essa convalidação e, consequentemente, correta a cobrança do FECP. Não há, portanto, em termos práticos o que se discutir sobre esse aspecto da questão.
No que se diz respeito ao Rio Têxtil, já tive a oportunidade de demonstrar neste espaço que o estado de São Paulo ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra dispositivos da Lei 6.331, de 10 de outubro de 2012, do estado do Rio de Janeiro, sob o argumento de que teriam, supostamente, criado benefícios fiscais relativos à incidência do ICMS não previstos em convênio celebrado no âmbito do Conselho de Política Fazendária (Confaz), tendo sido a respectiva relatoria entregue ao ministro Celso de Mello.
Conforme expus na ocasião, o meu entendimento é o de que não há qualquer inconstitucionalidade decorrente da aplicação do Rio Têxtil, tendo em vista que se trata de mero regime tributário opcional de recolhimento, ao qual não se pode atribuir a natureza de benefício, incentivo ou favor fiscal do qual resulte redução ou eliminação do ICMS, sendo, consequentemente, dispensável a prévia aprovação do Confaz.
De fato, o que se fez por seu intermédio foi simplesmente criar um regime alternativo de pagamento do imposto, em que o saldo devedor é desde logo atribuído/estimado em 2,5% do valor das operações realizadas, tornando, nessas circunstâncias, desnecessária a apuração periódica de créditos e débitos.
É o mesmo que ocorre, na esfera federal, com a opção outorgada ao contribuinte para utilizar-se do lucro presumido ou do lucro real, na apuração do imposto sobre a renda (IR) por ele devido, ou, agora na esfera municipal, com a legislação do ISS, quando determina que as sociedades profissionais recolham valor fixo do imposto, ao final de determinados períodos, em contraposição ao que seria correspondente à aplicação da alíquota sobre o respectivo movimento econômico das referidas sociedades.
São situações em que o contribuinte poderá estar pagando mais pelo método alternativo do que pagaria se utilizasse a apuração tradicional. Para tanto, bastará que o valor presumido (para o IR) e fixo (para o ISS) seja superior ao que resultaria da tributação regular do imposto.
Aliás, quanto ao ISS, por unanimidade de votos, o STF firmou jurisprudência no sentido de que a referida tributação fixa não configura isenção, sequer parcial. Houve, no caso, segundo o tribunal, mera determinação da base de cálculo do ISS, que é elemento pertinente à definição das regras relativas à sua incidência.
Da mesma forma, não há no caso em exame (do Rio Têxtil), benefício fiscal que enseje a necessidade de prévia aprovação pelo Confaz, pelo que as suas regras são, a meu ver, constitucionais.
Abstraíndo-se dessa discussão, o assunto que trago à mesa nesta oportunidade é se seria constitucional o aumento de um ponto percentual da alíquota do Rio Têxtil, promovido pelo Decreto 45.607/16, com o objetivo de propiciar o repasse da elevação do FECP de 1% para 2%, determinado pela Lei Complementar do RJ 167, de 28 de dezembro de 2016.
A lei criadora do Rio Têxtil prevê a possibilidade desse repasse? O Decreto 45.607/16 estaria extrapolando os seus limites quando determinou esse aumento de alíquota?
Vejamos, abaixo, o que determinam os parágrafos 11 e 12, do artigo 2o, da lei 6331/12, a esse respeito:
“Art. 2º O estabelecimento fabricante, de que trata o artigo 1º desta Lei e que por ela optar, deverá recolher o Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual ou Intermunicipal e de Comunicações – ICMS, equivalente a 2,5% (dois e meio por cento) sobre o valor contábil das operações de saídas realizadas no mês de referência, observadas as disposições seguintes.
…
§ 11 – No percentual mencionado no caput deste artigo, considera-se incluída a parcela de 1% (um por cento), destinada ao Fundo Estadual de Combate à Pobreza e às Desigualdades Sociais – FECP, instituído pela Lei nº 4.056, de 30 de dezembro de 2002.
§ 12 – No caso de descontinuidade do fundo a que se refere o parágrafo 11 deste artigo, a parcela de 1% (um por cento) será incorporada no percentual mencionado no caput deste artigo”.
No exame da legislação acima, constata-se que, definida a alíquota a ser utilizada para o cálculo do valor a ser mensalmente recolhido a título de ICMS (de 2,5%), os dispositivos transcritos determinam que, nesse percentual, está incluída a parcela destinada ao FECP, que será a ele agregada caso o referido fundo seja descontinuado.
Ou seja, o que está previsto e normatizado é tão-somente a situação em que há a extinção, ou, no máximo, a diminuição da parcela destinada ao FECP, hipóteses em que haverá a sua incorporação na alíquota de 2,5%, acima referida.
Não há dúvida, portanto, de que a parcela relativa àquele fundo está inserida na alíquota de 2,5% de ICMS devido por quem esteja se valendo das regras do Rio Têxtil, e que, no caso de sua extinção ou diminuição, o respectivo valor será convertido na alíquota do imposto a ser recolhido.
O que não está determinado pela referida lei é se também seria possível a aplicação de regra semelhante às hipóteses de aumento da alíquota definidora da parcela destinada ao FECP, como ocorre no caso em exame.
Note-se, ainda, que, mesmo que houvesse tal determinação, a lei também teria se omitido em relação à proporção em que a referida conversão poderia se dar.
No que concerne à omissão relativa à ausência de norma expressa sobre o que deve ser feito na hipótese de aumento da alíquota relativa ao FECP, não me parece que ela possa ser suprida por meio de mera ilação ou aplicação analógica da regra legal existente, que, como visto, trata exclusivamente da situação oposta à ora examinada: diminuição ou extinção da referida participação. De fato, a aplicação analógica da lei tributária é possível, mas desde que dela não decorra “exigência de tributo não prevista em lei” (parágrafo primeiro do artigo 108 do Código Tributário Nacional).
Por outro lado, como é notório, por força dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade cerrada, os elementos relativos à instituição ou majoração de tributos devem estar contidos expressa e exclusivamente em lei, não podendo o contribuinte ser constrangido a pagar qualquer valor cuja determinação não seja decorrente de norma dessa natureza.
Nesse passo, a parcela de atribuições normativas outorgada ao Poder Executivo está circunscrita à mera regulamentação, por decreto ou normas complementares (elencadas no artigo 100 do CTN), das regras que tiverem sido expressamente determinadas por lei, sem que possa haver qualquer extrapolação desses limites.
É o que se depreende do seguinte trecho da ementa do Recurso Especial (Resp) 665.880, julgado na 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 14 de fevereiro de 2006, tendo sido relator o então ministro daquele tribunal Luiz Fux:
“O ato administrativo, no Estado Democrático de Direito, está subordinado ao princípio da legalidade (CF/88, artigos 5º, II, 37, caput, 84, IV), o que equivale a assentar que a Administração só pode atuar de acordo com o que a lei determina. Desta sorte, ao expedir um ato que tem por finalidade regulamentar a lei (decreto, regulamento, instrução, portaria, etc.), não pode a Administração inovar na ordem jurídica, impondo obrigações ou limitações a direitos de terceiros”.
Tem-se, portanto, que o decreto não pode inovar, não pode criar nem estabelecer regras que não tenham sido legalmente previstas, principalmente se, de tais normas, decorrer instituição ou majoração de tributo.
Daí a ilegalidade do decreto em exame. Sem que haja expresso fundamento na lei de regência, ele determina que seja agregada à alíquota do ICMS devido pelos optantes do Rio Têxtil a parcela relativa ao acréscimo da contribuição ao FECP (de 1% para 2%).
E, mesmo que a possibilidade de tal agregação tivesse sido prevista em lei, o que se admite apenas por amor ao debate, ainda assim, haveria a segunda omissão a que me referi acima, relativa à proporção em que ela poderia ser realizada.
Pelo princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, forçosa é, a meu ver, a conclusão de que a definição do valor referente a essa agregação deveria ser feita na mesma proporção que o aumento de um ponto percentual mantém com a alíquota total regular do imposto (de 19%). Aplicar-se-ia, portanto, simples regra de três, em que a alíquota de 2,5% estaria para a alíquota de 19%, assim como “x” estaria para a alíquota de 20%. Por esses cálculos, a alíquota do Rio Têxtil passaria de 2,5% para tão-somente 2,63%.
O que não me parece concebível é que esse acréscimo possa ser feito sem que seja considerada essa proporcionalidade, mediante a simples agregação desse um ponto percentual à referida alíquota, como fez o decreto, ao passá-la de 2,5% para 3,5%.
Outro aspecto que flagra a inconstitucionalidade das regras criadas por esse decreto é a determinação nele contida de que as suas regras produziriam efeitos imediatos.
De fato, mesmo que o aumento que ele proporciona não configurasse absoluta extrapolação de limites da lei que lhe serve de fundamento, e que, abstraindo-nos dessa irregularidade, a alíquota por ele fixada tivesse atendido aos parâmetros de proporcionalidade acima referidos, por se tratar de incontestável aumento de tributo, tais regras teriam que ter respeitado o princípio constitucional da anterioridade, o que impossibilita a pretendida cobrança imediata do tributo.
Poder-se-ia alegar, quanto a esse aspecto específico, que, por se tratar de “diminuição” de benefício fiscal (já que há um aumento da alíquota supostamente beneficiada), não seria necessária a observância desse princípio constitucional no aumento proporcionado pelo decreto.
E isso seria dito com base em precedentes do STF no sentido de que as regras relativas à revogação de isenções poderiam produzir efeitos imediatos (sem observância das regras de anterioridade), tendo em vista que, no Direito brasileiro, o instituto da isenção configuraria mera exclusão do crédito tributário, e não da incidência do imposto em si. Consequentemente, a referida revogação não produziria o efeito de criar nova incidência, deixando de estar presente, portanto, a situação que tornaria necessária a observância do referido princípio constitucional.
A meu ver, esse argumento não prospera por três razões:
(a) em primeiro lugar, porque, como lembrado no início desta coluna, o Rio Têxtil não configura benefício fiscal, mas mero regime alternativo de recolhimento de ICMS (semelhante ao lucro presumido);
(b) em segundo lugar, porque mesmo que fosse benefício fiscal, ele não teria natureza de isenção, a qual seriam aplicáveis os precedentes acima referidos; e
(c) em terceiro lugar, porque a jurisprudência recente tem sido no sentido de determinar a aplicação do princípio da anterioridade, mesmo quando se trate de revogação de benefícios fiscais. Nesse sentido, a ementa abaixo transcrita:
“Imposto Sobre Circulação De Mercadorias E Serviços – Decretos Nº 39.596 E Nº 39.697, De 1999, Do Estado Do Rio Grande Do Sul – Revogação De Benefício Fiscal – Princípio Da Anterioridade – Dever De Observância – Precedentes. Promovido aumento indireto do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS por meio da revogação de benefício fiscal, surge o dever de observância ao princípio da anterioridade, geral e nonagesimal, constante das alíneas “b” e “c” do inciso III do artigo 150, da Carta. Precedente – Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.325/DF, de minha relatoria, julgada em 23 de setembro de 2004. MULTA – AGRAVO – ARTIGO 557, § 2º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. Surgindo do exame do agravo o caráter manifestamente infundado, impõe-se a aplicação da multa prevista no § 2º do artigo 557 do Código de Processo Civil.” (Recurso Extraordinário 564.225 AgR, relator ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 02.09.2014)
Em suma, as regras do Decreto 45.607/16 aqui examinadas são ilegais porque delas decorre aumento de tributo não possibilitado pela lei de regência e definido em padrões que escapam à razoabilidade e à proporcionalidade que deveriam balizá-lo. E mesmo que legal fosse o referido aumento, ter-se-ia que respeitar o princípio da anterioridade, o que não ocorreu na hipótese.
Como afirmei no início desta coluna, todos esperamos que as dificuldades orçamentárias pelas quais passa o estado do Rio de Janeiro sejam todas integralmente resolvidas, mas não por meio de regras que causem ainda mais insegurança jurídica aos já combalidos contribuintes fluminenses.