Breves reflexões sobre o "preço" da liberdade e a Defensoria Pública
No dia 5 de maio de 2016, foi publicado acórdão com o resultado do julgamento de um Habeas Corpus (0160636-44.2016.8.13.0000) impetrado pela Defensoria Pública de Minas Gerais em que foi decidido, por maioria, em sessão da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do estado, pela denegação da ordem. Mais do que um dos inúmeros casos analisados pela Justiça mineira, chamou a atenção em especial o voto do relator.
O caso versa sobre o roubo de um aparelho celular, em que o acusado recebeu liberdade provisória concedida pelo juízo de primeira instância mediante o pagamento de R$ 293 de fiança, mas se encontra (ao menos quando do escrito do presente texto), há meses, preso pela impossibilidade de pagar o valor. Diante do longo período preso e por discordar dos fundamentos que mantinham a custódia, a defesa provocou o tribunal para assegurar a liberdade do paciente. Exercitando a arte de julgar, a câmara entendeu por bem rejeitar a ordem pleiteada. Esse é o resumo do cenário.
Cumpre em um primeiro momento registrar que o crime inequivocamente motiva acalorados debates. Por vezes, cumpre quase um papel de objeto de entretenimento e, nesse contexto, a fé nas penas, panaceia aparente de todos os males, gera na sociedade preocupantes falas entusiasmadas de punitivismo em escala crescente e danosa.
Diferentes segmentos sociais com voracidade opinativa se apressam sempre em fornecer análises açodadas sobre o fenômeno criminal, normalmente sendo respaldados pela grande imprensa. Não raro sem maiores reflexões. O remédio é óbvio, tanto que chegam a imaginar inexplicável que assim não ocorra sempre: é preciso prender. O perigo é a ciência se nivelar ao debate leigo.
A preocupação se amplia sensivelmente quando ideias de menoscabo a direitos fundamentais se fazem presentes no corpo de decisões judiciais. Verificado isso, deve-se imediata e necessariamente, no espaço de produção do pensamento, e com o respeito devido submeter às referidas ilações a testes de validade epistemológicos pelo bem do Estado de Direito.
Espantaram alguns fundamentos utilizados pelo relator no caso modelo. Destacam-se:
[…]
De relevo registrar que não há o que se falar em constrangimento ilegal imposto ao paciente por força do arbitramento de fiança.
A rigor, d.m.v., para tanto, existe previsão legal.
[…]
Ademais, não se pode olvidar que o paciente já foi por demais beneficiado com a fiança arbitrada, no valor de R$ 293,00 (duzentos e noventa e três), importância esta equivalente à um terço do salário mínimo, devendo se exigir certo esforço do autuado para arcar com a quantia arbitrada.
Já se foi o tempo, e há muito, que o Judiciário era um Poder dado a prestar filantropia. A rigor todo processo tem um preço. E cabe ao operador do direito, mesmo que da Defensoria Pública observar o custo e o benéfico do seu pleito.
Será que ninguém, por mais benevolente que seja, não tenha feito uma análise do quanto custa para o Estado um pleito desta natureza?????
Será que vale a pena onerar o Estado com o custo de uma demanda extremamente superior ao valor questionado para obter a liberdade do paciente?????
A falta de bom senso e a valorização de um trabalho jurídico me impressionam!!!!!
Como dito acima já se foi a época em que o direito era tratado como poesia e o Judiciário visto como a casa da concessão de benefícios e de filantropia.
O abuso é reinante e deve ser contido.
E mais uma vez não me venham dizer que o Estado gasta muito mais para manter este paciente preso do que o valor arbitrado para a fiança. Aqui, são coisas distintas, o que se gasta com um preso é muito menos do que o estrago que este pode fazer quando em liberdade.
São por estas e outras que o Judiciário se encontra assoberbado e questões de maior indagação aguardam solução, a falta de bom senso virou regra e o desrespeito com a Justiça aumenta a cada segundo […].
O fato de o Código de Processo Penal admitir a fixação da fiança no valor arbitrado torna a manutenção do custodiado preso pelo seu não pagamento legal?
Elementar que não. Não é porque abstratamente está prevista na legislação a fixação da cautelar de fiança que a sua manutenção e exigência, mesmo diante de um quadro de óbvia impossibilidade de pagamento por parte do custodiado, é regular. A solução se encontra no próprio código.
Explica Aury Lopes Jr. a natureza de contracautela da fiança, garantia patrimonial, prestada pelo imputado e que se destina, inicialmente, ao pagamento das despesas e fator inibidor de fugas[1]. A partir da reforma processual de 2011, lembra o culto professor que a fiança passou a ter uma atuação mais ampla: funciona como condição imposta à concessão de liberdade provisória e como cautelar diversa da prisão.
Ocorre que não pretendeu o legislador na origem e nem o reformista a manutenção da custódia daquele que não possui condição de custear o valor da fiança, visto que, em 2011, foi determinada redação ao artigo 350 do Código de Processo Penal que manteve expressamente a previsão de que, verificada a situação econômica desfavorável do réu, seria perfeitamente cabível a fixação de exigências alternativas, diferentes da prisão preventiva, dentro da lógica de que a cautelar mais extremada é para os casos absolutamente excepcionais. Não é difícil concluir o fim que motivou o legislador: a igualdade constitucionalmente determinada.
Sob qualquer ângulo em que se analise, é dificultosa a compreensão da troca de prisão por dinheiro. Imagine-se, então, se em um Estado Democrático que prima pela dignidade humana e proclama a todos a igualdade se poderia conceber que o legislador infraconstitucional autorizasse a prisão daqueles que não possuem condições de pagar uma fiança enquanto que aos mais abastados bastaria o pagamento da fiança para serem liberados. Jamais. Desde o Código de Processo Criminal do Império, a carência de recursos financeiros era parâmetro para relativizar as consequências da fiança aos pobres.
A questão, felizmente, sempre mereceu a censura dos tribunais e, lamentavelmente, não é nenhuma novidade. A título de exemplo, no Superior Tribunal de Justiça, mais precisamente no HC 113.275, em 2011, a ministra Maria Thereza concedeu a ordem para determinar a imediata soltura de um custodiado da Defensoria Pública que não tinha condições de pagar a fiança arbitrada na apuração de um delito de furto e aguardava há incríveis dois anos preso. No referido julgado, a eminente juíza teve a oportunidade de consignar que, assistido pela Defensoria Pública, a hipossuficiência econômica do réu é, inclusive, presumida. A mesma conclusão já foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal, no HC 114.731, igualmente impetrado pela Defensoria Pública.
A hipossuficiência econômica fica ainda claramente demonstrada pelo fato de o réu estar longamente submetido à prisão sem que tenha até o presente momento feito o depósito do valor arbitrado. Não é razoável supor ordinariamente que quem tenha condições de arcar com os custos da contracautela arbitrada troque sua liberdade individual por longo período preso nas masmorras nacionais. É um desafio ao bom senso, já censurado sob essa ótica igualmente pelas cortes superiores em diversas oportunidades, por todas elas: RHC 64.136 e RHC 65.655 do STJ.
As previsões constitucionais, legais e das cortes superiores não foram ainda capazes de convencer os julgadores pátrios de forma definitiva que a pobreza não pode, no Estado de Direito, constituir óbice à liberdade. Fica o lamento na esperança de provocar reflexões que contribuam para evolução dessa quadra histórica.
O Judiciário outorga algum tipo de “benefício” ao proceder à concessão de uma liberdade provisória ao miserável econômico alterando a cautelar financeira para outra diversa da prisão?
Somente poderia concordar com a afirmativa aquele que acredita que o Poder Judiciário, ao reconhecer direitos, no caso, a incidência do artigo 5º,caput, CRFB/88 e 350 do CPP, o faz por benevolência, e não por dever.
Thiago M. Minagé teve oportunidade de consignar em palestra[2] proferida na OAB-RJ de forma assertiva que ao Poder Judiciário não se pede e jamais se pediu favores quando os atores legitimados o provocam a reconhecer direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, mas sim dele se exige o cumprimento de deveres e a obediência às leis da República.
Nenhum pedido de favor existe no ato de se invocar o exercício da nobre função para o qual está investido o julgador que é a defesa da Carta Constitucional. Diga-se: função típica contramajoritária e de moderação do poder punitivo.
É Francesco Carnelutti[3] quem adverte que é só ilusão a crença de que são os delinquentes que perturbam a paz, e que a perturbação se pode eliminar simplesmente separando-os dos outros. Justamente contra essa tentação social ganha relevo a função de controle do Poder Judiciário sobre a força estatal. Há bastante tempo já se revelou impossível uma análise razoável do sistema penal sem levar em consideração sua clara seletividade. Exposta nas vísceras com a manutenção da custódia atacada pela Defensoria no caso comentado.
Sobre o tema, aponta Rubens Casara[4] a possibilidade de, com o objetivo de punir os “bandidos” que afrontaram a lei, terminar por violá-la. Isso impulsionado pelo cenário em que o enredo que pauta o processo é justamente o objeto a ser consumido pela sociedade, com o auxílio dos meios de comunicação de massa, tornando-o simplório, acrítico e submetido a uma onda autoritária.
Ao considerar que a atuação do Judiciário reconhecendo a liberdade do paciente em um caso como o presente seria a prestação de favor, o processo penal, instrumento de racionalização do poder penal, acaba por sofrer uma degeneração.
Cabe à Defensoria Pública ponderar o custo econômico do pleito da liberdade para o manejo de ação de Habeas Corpus e, ainda, vale a pena onerar o Estado com o custo de uma demanda extremamente superior ao valor questionado para obter a liberdade do paciente?
Somente para quem não está preso se entende que a reflexão financeira proposta possa exercer uma inicial sedução. Ocorre que o pensamento não resiste a um teste de validade constitucional.
Na lição kantiana[5], se aprende de forma definitiva que todas as coisas têm preço, menos o homem, que, com sua condição de ser racional e sendo ele um fim em si, tem dignidade. O imperativo categórico kantiano originou proposição ética no sentido de que cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo, e não como meio para realização de metas coletivas ou de outras metas individuais.
No Brasil, a dignidade humana consubstancia a regra acima aludida e foi transposta do plano ético para o domínio do Direito, no artigo 1º, inciso III, da CRFB/88. A dignidade identifica um espaço de integridade a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo[6], razão pela qual não há espaço para ponderação entre custo e proveito quando oposta a liberdade individual com o gasto estatal com o curso de uma ação. Sobretudo diante de uma manifesta ilegalidade, já reiteradamente reconhecida pelos tribunais.
Espanta também o tom categórico adotado acerca da culpa, quando ainda o que se impugnava pela ação constitucional era o efeito ilegal da cautelar fixada pelo juízo de primeira instância. Abandonou-se sem maiores cerimônias a presunção de inocência, em tempos que a corte constitucional a relativiza depois do acórdão meritório proferido em segunda instância. No caso analisado, não se aguardou nem a sentença de mérito para se tecerem ácidas considerações sobre a culpa. É claramente um dos perigos da porta aberta pelo Supremo.
No que concerne à Defensoria Pública, nenhum de seus membros possui nem mesmo margem para titubear e flertar com a premissa do julgado. A partir do texto constitucional e sua legislação de regência, o dever de atuar em casos como o retratado se impõe.
A Constituição Federal, pontua Bheron Rocha[7], cria a Defensoria Pública autônoma e independente para instrumentalizar o acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV), verdadeira forma de caminhar para construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em favor dos necessitados. Em abono, Diogo Esteves e Franklyn Silva[8] contextualizam que a Defensoria Pública possui a irrenunciável função de promover a inclusão das classes menos favorecidas, única estrutura estatal destinada a trabalhar juridicamente para garantir a redução das desigualdades sociais, justamente se valendo da prestação da assistência jurídica integral e gratuita.
Jamais poderia legitimamente uma instituição vocacionada para tal tarefa se quedar inerte diante da verificação de um ser humano ilegalmente preso, unicamente pela desfortuna financeira que claramente já se verificou. Quando todos já viraram as costas ao indivíduo, por ofício não pode a Defensoria igualmente operar. É razão de sua existência.
Não fosse o bastante, o comando constitucional que norteia as ações da Defensoria Pública é o de promoção do regime democrático e promoção dos diretos humanos de forma integral e gratuita (artigo 134 do CRFB/88), com a prestação e exercício da defesa dos necessitados, em todos os graus. Igualmente, a primeira das funções elencadas no artigo 4º, I, da Lei Complementar 80 de 1994 é exatamente essa.
Pelo próprio perfil constitucional e legal a essa instituição atribuído, no desenvolvimento de sua missão constitucional, seria inimaginável que se cobrasse dela comedimento financeiro da órbita aventada.
Quando é a liberdade que se encontra na encruzilhada, somente resta a instituição protetora dos oprimidos agir. Também não o faz favor, mas por dever, bom registrar.
[1] Lopes Jr. Aury. Direito Processual Penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 692.
[2] http://emporiododireito.com.br/thiago-m-minage-fala-sobre-a-dinamica-dos-advogados-em-audiencias-de-custodia-em-evento-na-oabrj/ Acessado em: 18/5/2016.
[3] Carnelutti, Francesco. As Misérias do Processo Penal. São Paulo: Editora Pillares, 2009. p. 119.
[4] Casara, Rubens R. R.. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015. p.13.
[5] Kant, Immanuel. Fundamentação à Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quntela. Lisboa: Edições 70, 2004. p. 77-78.
[6] Barroso, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p.252.
[7] http://emporiododireito.com.br/defensoria-publica-autonoma/ Acessado em: 19/5/2016.
[8] Roger, Franklyn e Esteves, Diogo. Princípios Institucionais da Defensoria Pública: de acordo com a EC 74/2013. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p.317.