"Marca da 'lava jato' é uso da colaboração premiada como forma de defesa"
Festejada por boa parte da opinião pública na mesma medida em que é questionada por seus métodos pela advocacia criminal, a operação “lava jato” deixo uma marca irreversível no estudo do Direito: o uso da delação premiada como estratégia de defesa. A avaliação é do delegado da Polícia Federal Márcio Adriano Anselmo, que presidiu as investigações iniciais que culminaram em um dos mais conhecidos e noticiados escândalos de corrupção da literatura política e policial do país.
Ele admite que, quando voltou de um doutorado, em janeiro de 2014, para assumir um inquérito sobre lavagem de dinheiro (tema de sua tese), não previa a proporção que as coisas tomariam dali pra frente.
Em entrevista à ConJur, onde também é colunista (ele divide o espaçoAcademia de Polícia junto com outras colegas civis e federais), Márcio Anselmo encara o mecanismo de forma pragmática: “Quando seu cliente não tem outro meio de defesa, e resolve optar por colaborar com a investigação, há que se parar e estudar, concordando ou não”, avalia.
O delegado, entretanto, minimiza o peso que o mecanismo tem no contexto de toda operação. Para ele, a colaboração acaba sendo uma consequência da instrução processual e das provas levantadas. “Qual motivo levaria um investigado a colaborar se as provas contra ele fossem frágeis?”, indaga.
Se a operação e sua face mais popular, na figura do juiz Sergio Moro, são alvos de questionamentos justamente por certo “desprestígio” ao direito de defesa, o delegado Márcio Anselmo vê a necessidade do que chama “compatibilização” das garantias do réu com a investigação criminal.
Ele cobra, por exemplo, uma disciplina no direito de acesso ao processo, sobretudo em casos de quebras de sigilo, e defende que a defesa deve ser exercida a partir do indiciamento. “Dada a inércia do legislador, os tribunais superiores têm delimitado essas garantias caso a caso”, avalia.
Em meio às tradicionais rusgas entre Polícia Federal e Ministério Público, o delegado reafirma o direito que ele e seus colegas têm de fazer acordo de delação premiada, até mesmo como garantia de defesa — por causa da vocação do MP para a acusação.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Márcio Anselmo comenta ainda a qualidade da investigação criminal no país, os apontados erros da Polícia Federal, as pressões a que a instituição está submetida e a pauta de reivindicações que movimentam a categoria.
Leia a entrevista:
ConJur — A investigação no Brasil depende demais de interceptações e delações?
Márcio Adriano Anselmo — De forma alguma. Essa é uma premissa totalmente equivocada. A porcentagem de inquéritos em que existe interceptação telefônica é mínima, até mesmo pela dificuldade, seja em justificá-la, enquadrando nos critérios legais, seja em instrumentalizá-la. Só quem já atuou com interceptações telefônicas sabe o quanto o trabalho é exaustivo e necessita de recursos humanos qualificados. Quanto às colaborações, a quantidade ainda é menor, até porque independe da vontade da polícia ou do MP, mas também da convergência de “vontades” com o investigado.
ConJur — Qual o objetivo de se dar nome às operações? Não afasta a sobriedade da instituição?
Márcio Adriano Anselmo — O fato de se atribuir o nome a uma operação policial torna mais fácil sua identificação. Eu poderia, por exemplo, atribuir-lhe apenas um número, mas busca-se, com o nome, humanizá-la e facilitar a sua associação com os fatos investigados. Essa prática existe por todo o mundo.
ConJur — Como recebe as críticas de que as operações são espetacularizadas?
Márcio Adriano Anselmo — O que seria espetacularizar? Há uma diferença muito grande na divulgação de uma investigação, até mesmo para que seja garantido o controle por parte da sociedade, da mera exposição de investigados. Não concordo com a exposição indiscriminada de investigados, mas considero a publicidade da investigação, em alguns casos (como por exemplo nos casos de desvio de recursos públicos), fundamental e mais, um imperativo de interesse público.
ConJur — Existe alguma política de controle de vazamentos de informações sigilosas? Quais são seus resultados?
Márcio Adriano Anselmo — A questão dos vazamentos é bastante complexa. Muitas vezes o que se considera vazamento é apenas um levantamento de sigilo judicial manipulado pela imprensa descompromissada com o dever de informar. Mas o fato é que, quanto mais pessoas têm acesso a determinada informação, mais difícil é o controle, principalmente num caso complexo em que há vários grupos antagônicos com interesses diversos. A compartimentação de informações é fundamental nas investigações e muitas medidas que poderiam ser adotadas perdem sua eficácia em razão deles. Veja, por exemplo, quantos casos temos de investigações que seguiram normalmente seu curso sem qualquer vazamento. A primeira fase da “lava jato”, por exemplo, transcorreu por nove meses sem qualquer incidente nesse sentido.
ConJur — Como avalia a qualidade da investigação criminal hoje?
Márcio Adriano Anselmo — A investigação criminal evoluiu muito nos últimos tempos. Hoje a Polícia Judiciária tem instrumentos legais que permitem que o crime organizado seja combatido de maneira mais eficaz e as investigações e resultados obtidos nesse campo pela Polícia Federal são relevantes. Contudo, sabemos que historicamente as polícias civis sofrem com pouco investimento, pouco efetivo, milhares de inquéritos para um único delegado, que muitas vezes atende diversas comarcas simultaneamente. Sabemos que muitos delegados fazem o melhor que podem com os recursos que têm disponíveis. Temos que trabalhar com o foco nos casos de maior relevo, já que não há recursos suficientes para aprofundarmos todas as investigações que temos que lidar. Há também um mito que muitas vezes é reproduzido no sentido de que uma pequena porcentagem dos inquéritos policiais geram denúncias criminais, logo, seriam ineficazes.
ConJur — Por que um mito?
Márcio Adriano Anselmo — Precisamos entender que o objetivo do inquérito não é gerar uma denúncia criminal. O inquérito policial visa apurar se um crime ocorreu e quem é o seu autor, não apenas buscar elementos que corroborem a tese da acusação. Se o inquérito foi concluído no sentido da inexistência do crime, ou apurou a autoria mas demonstrou a existência de uma causa excludente de ilicitude, por exemplo, foi uma investigação eficaz. Vemos que as críticas à Polícia e à investigação são muitas vezes feitas baseadas em clichês sem qualquer estudo sério que as embase. As investigações criminais poderiam ser mais eficazes se as mesmas pessoas que as criticam, usassem esse tempo para cobrar dos governantes maiores investimentos na área de Segurança Pública.
ConJur — Em que medida os policiais federais têm consciência do impacto político de suas ações?
Márcio Adriano Anselmo — Não trabalhamos pensando em impacto político. Isso é uma consequência. Já fomos acusados até de programar medidas em datas comemorativas de determinada agremiação partidária. Isso beira ao absurdo. É como se tivéssemos uma agenda social. As ações são desencadeadas quando estão maduras e quando é possível conjugar os elementos materiais e logísticos para tanto. A logística para a realização dessas “fases” e muito grande e demanda um árduo planejamento, às vezes chega a ser curioso alguns discursos no sentido de que uma ou outra fase foi preparada “da noite para o dia”.
ConJur — As operações castelo de areia e satiagraha notabilizaram-se por terem sido anuladas na Justiça por ilegalidades cometidas pela PF. Onde a PF erra?
Márcio Adriano Anselmo — Essa história de apontar que foi anulada por um erro é complicada! Já passamos por um ambiente de instabilidade jurídica muito forte. Recentemente veio a público um posicionamento de uma turma do STJ que era absolutamente conflitante com o de outra turma no caso do WhatsApp. O Direito não e uma ciência exata e está sujeito a interpretações. Infelizmente temos que conviver com muitos entendimentos “inovadores”, que jogam por terra meses ou anos de trabalho sério e baseado na lei. O que causa mais perplexidade é que as razões usadas em geral para anular operações da Polícia Federal referem-se a instrumentos de investigação que são usados comumente em casos sem repercussão, e que aí não se questiona sua legalidade.
ConJur — Por exemplo?
Márcio Adriano Anselmo — Uma das operações citadas em sua pergunta foi anulada, segundo informações da imprensa, em razão de os monitoramentos telefônicos terem tido por base informações advindas de uma denúncia anônima. Ora, há investigações relativas a tráfico de drogas, pedofilia, fraudes diversas, que geram condenações, mantidas em tribunais superiores, que tiveram seu início com os mesmos instrumentos, mas aí ninguém questiona. Então me parece que tais anulações têm mais relação com o investigado e seu poder econômico.
ConJur — Como a PF justifica erros como o que levou um advogado a ser conduzido coercitivamente por causa de um engano com o nome na operação zelotes?
Márcio Adriano Anselmo — Não acompanhei de perto a situação, então não tenho como saber exatamente o que aconteceu. Mas posso dizer que qualquer pessoa ou organização é passível de erros. Não só a Polícia Federal, mas os demais órgãos públicos e privados são igualmente falíveis. O que devemos é buscar minimizar os equívocos tanto quanto possível. A Justiça Federal já chegou a intimar um homônimo para uma audiência; o Ministério Público vez ou outra perde prazos recursais; e não são raros os advogados destituídos da defesa criminal por insuficiência técnica. Erros acontecem.
ConJur — Por que a PF vem indiciando autoridades com prerrogativa de foro que já são investigadas em inquéritos sob supervisão judicial?
Márcio Adriano Anselmo — O indiciamento é o juízo que a autoridade policial faz a respeito de quem é o autor de um fato criminoso a partir dos elementos que colheu no inquérito. Essa conclusão é submetida ao Ministério Público, que pode ou não concordar, denunciar ou não as pessoas que a autoridade policial indiciou. O indiciamento é previsto em lei, e o fato de o inquérito tramitar perante tribunais superiores não impede que a polícia apresente sua conclusão nos autos. O indiciamento é atribuição exclusiva da autoridade policial e não vejo motivo para que, nos casos que tramitam nos tribunais superiores, sejam realizados de forma diferente.
ConJur — O senhor concorda com todas as 10 medidas anticorrupção propostas pelo MPF?
Márcio Adriano Anselmo — Fui um dos primeiros a assinar o manifesto pelas medidas. Não concordo com todas, mas parto do pressuposto que o tema precisa ser discutido. No Brasil existem dois processos penais, o do pobre e o do rico. Isso se reflete claramente nos crimes “do colarinho branco”. As vezes você, enquanto autoridade policial, é obrigado legalmente a lavrar um auto de prisão em flagrante de uma pessoa que esta comercializando cigarro adquirido no Paraguai, cuja importação é vedada e, por outro lado, se depara com diversos casos de desvios bilionários de recursos que terminam sem punição. É preciso garantir que o sistema funcione. Não concordo integralmente com as medidas, como a medida que fala em teste de integridade obrigatório para os policiais e facultativo para outros servidores públicos. Tal raciocínio parte da premissa que um policial seria mais corruptível que qualquer outro funcionário público e não é isso que vemos na prática. Ademais, a medida mais importante, a meu ver, que é a revisão do foro por prerrogativa, não figura entre as 10 medidas. Essa deveria ser a grande bandeira. É inconcebível pensar numa denúncia criminal como vimos recentemente divulgado pela imprensa, que leve mais de três anos para ser submetida a plenário apenas para análise do seu recebimento. Isso é um estímulo à corrupção política em larga escala. A própria investigação perante os tribunais superiores acaba sendo extremamente burocrática e demorada. O Supremo Tribunal Federal é uma corte constitucional. Não deve ter atribuição para julgar a grande massa de agentes políticos do país. Uma corte constitucional não é formatada para isso.
ConJur — É preciso se relativizar de alguma forma as garantias da defesa?
Márcio Adriano Anselmo — Não diria relativizar. É preciso compatibilizar essas garantias com a investigação criminal. Disciplinar, por exemplo, o direito de acesso aos autos, especialmente nos casos mais complexos, com quebras de sigilo fiscal e bancário de uma dezena de investigados. Também acho importante assegurar um marco a partir do qual essa defesa deva ser exercida, o qual, na minha opinião, é o momento do indiciamento. Dada a inércia do legislador, os tribunais superiores têm delimitado essas garantias caso a caso. Como o inquérito policial é um procedimento que visa apurar a ocorrência de um fato criminoso, e não apenas buscar elementos para a acusação, é salutar a participação da defesa do investigado, apresentando os elementos que julgar pertinentes, assim como o Ministério Público tem a possibilidade legal de requerer diligências no inquérito. Mas reconheço que é um tema que ainda carece de amplas discussões visando equacionar as garantias das partes envolvidas.
ConJur — Qual paradigma jurídico a “lava jato” trouxe para o Direito? Qual grande tese ela introduziu?
Márcio Adriano Anselmo — A “lava jato” introduziu de forma definitiva a justiça premial no Direito brasileiro, fez com que os profissionais do Direito tivessem que parar para estudar o assunto e repensar suas posições. Era muito fácil ser contra academicamente falando, mas quando seu cliente não tem outro meio de defesa, e resolve optar por colaborar com a investigação, há que se parar e estudar, concordando ou não. Ela serviu também para expor as mazelas de nosso sistema político e da corrupção como um todo. Me recordo quando da deflagração da sétima fase, que alguns criticaram uma entrevista de um advogado, no hall da Polícia Federal em Curitiba, quando o mesmo disse que não se colocava um paralelepípedo no Brasil sem pagar propina. A realidade está aí para demonstrar que ele tinha razão.
ConJur — O que define uma “força tarefa”? Como ela se organiza? Como é a coordenação do trabalho entre PF, MPF e 13ª Vara Federal?
Márcio Adriano Anselmo — Há estruturas distintas, o MPF se organiza em força-tarefa, a PF em grupo de trabalho, embora ambas, na prática redundem na mesma coisa. O juiz atua praticamente sozinho, em razão das regras processuais, contando apenas com os servidores da Vara. Cada instituição tem o seu trabalho e sua coordenação, sem ingerências no trabalho do outro. Mas reforço, o relacionamento existente entre MP e Polícia Judiciária nunca deve ser de subordinação. O bom resultado da “lava jato” é reflexo disso. Entendimentos divergentes podem existir e isso é natural.
ConJur — O fato de o juiz Moro ser de primeiro grau aumenta sua influência sobre outros magistrados, que passam a entender ser possível “fazer a diferença”?
Márcio Adriano Anselmo — Não creio que haja alguma correlação nisso. Há juízes de primeira instância com uma postura totalmente contrária —há caso até de juiz que não decretava prisões porque dizia que era muito trabalhoso para a vara. Da mesma forma, temos desembargadores e ministros de tribunais superiores que demonstraram trabalhos também dignos de “fazer a diferença”. Esses dias li um comentário interessante, que dizia que o brasileiro hoje conhece os ministros do Supremo, mas não conhece os jogadores da seleção brasileira de futebol. Não deixa de ter sentido. De qualquer forma, se a firmeza e seriedade com que o juiz Moro leva os casos sob sua responsabilidade der frutos por todo o Judiciário, creio que o país só tem a ganhar.
ConJur — As manobras do MP (pendrive da Suíça/BlackBerry) para esquentar provas podem anular a “lava jato” no futuro?
Márcio Adriano Anselmo — Não vejo essa história de manobras ou de “esquentar”. Isso é “tese de defesa” já rechaçada pelos tribunais. A situação do “pendrive da Suiça” já foi esclarecida e inclusive decidida pelo STJ, assim como a questão do BlackBerry não tem qualquer atuação do MPF. Essa questão do BlackBerry é absurda. Qual a diferença da interceptação levada a efeito em relação a um e-mail do Google ou do Hotmail? O próprio STF já se manifestou sobre a validade dessas provas. Mensagens trocadas por BlackBerry, por exemplo, há anos tem sido utilizadas para condenar traficantes de drogas. Por qual razão não poderiam ser utilizadas no caso de criminosos de colarinho branco?
ConJur — Uma das críticas à “lava jato” é que ela deixou de depender de grampos para depender de delações. Isso é sintoma de investigações infrutíferas?
Márcio Adriano Anselmo — De forma alguma. Inúmeras fases ostensivas foram deflagradas e inúmeras denúncias apresentadas em juízo sem qualquer colaboração. Veja, por exemplo, o caso da 23ª fase, que foi muito rica em material probatório e não foi lastreada em qualquer colaboração. Isso é uma falácia muito grande. A primeira fase da investigação foi muito bem instruída, com uma grande variedade de provas, sobretudo documentais, obtidas por meio de quebras de sigilo bancário, fiscal, telemático e telefônico, além de diversas outras diligências, que forneceram um substrato muito forte na sua base. Qual motivo levaria um investigado a colaborar se as provas contra ele fossem frágeis? A colaboração é mais uma estratégia de defesa, e dificilmente vai ser escolhida caso os elementos probatórios não sejam fortes o suficiente para a comprovação dos fatos.
ConJur — Como começou a “lava jato”? Em que medida era possível prever sua extensão?
Márcio Adriano Anselmo — A “lava jato” começou como todas as outras investigações de “doleiros” (na verdade lavadores de dinheiro) que tramitam por meio dos inúmeros inquéritos policiais no Brasil. Eu havia recém retornado de uma licença para cursar o doutorado e a delegacia estava sendo reestruturada quando priorizamos alguns casos que demandariam medidas mais complexas. Perspicácia e muito trabalho levaram ela a alcançar alguns passos maiores no início, como, por exemplo, a identificação do primeiro Blackberry, que levou à identificação dos outros operadores, pois estes sempre atuam em redes. Ou mesmo de medidas firmes, como o pedido de prisão preventiva de um alvo que naquela altura tinha uma participação colateral, mas foi surpreendido subtraindo provas de um local de busca. Uma soma de fatores foi garantindo a expansão da investigação. Certamente era impossível se prever que continuaria até hoje.
ConJur — Seria positivo reformar a Lei das Organizações Criminosas para estabelecer que os acordos de delação premiada devem ser firmados tanto pelo MP quanto pela polícia? Ou a autonomia desses órgãos pode levar a aprofundamentos em investigações que uma dessas partes não esteja interessada?
Márcio Adriano Anselmo — Essa previsão já existe na lei, tanto que foi objeto de recente ajuizamento de ADI por parte do procurador-geral da República, mesmo após quase três anos da publicação da lei. O aprofundamento das investigações deve ser de interesse público. O PGR quer agora aplicar a lógica inversa daquela apregoada na época da PEC 37, de que quanto mais gente investigar, melhor. Essa concentração de poderes não é saudável ao Estado Democrático de Direito. Veja que em um caso de repercussão há obviamente o interesse do MP em participar e decidir pela conclusão ou não de um acordo de colaboração. Mas imagine que há realidades Brasil afora em que um preso ou investigado em uma comarca do interior, em um caso que não seja considerado de repercussão na mídia, queira usar como meio de defesa o instrumento da colaboração premiada. Será que haverá promotores para ouvi-lo? E se o que ele tem a dizer puder ajudar a resolver outros casos criminais em andamento? Pode o delegado simplesmente ignorar essa situação quando não houver um promotor para atender a questão? O acordo que é firmado pela polícia é submetido ao parecer do MP, que poderá aferir assim tudo o que o investigado apresentou, e dar seu parecer. Logo, querer tirar a possibilidade de a polícia apresentar o acordo a um investigado, é enfraquecer um importante instrumento de investigação.
ConJur — Os acordos de delação premiada firmados pelo MP envolvem muitos benefícios processuais, como deixar de propor novas ações por fatos relacionados à colaboração e suspender os processos após as penas atingirem um determinado número de anos. Que tipos de benefícios a polícia poderia oferecer em um acordo de delação premiada?
Márcio Adriano Anselmo — Os benefícios estão estabelecidos em lei. Não se pode oferecer nem mais nem menos do que a lei permite. O que faculta ou não a atuação da polícia é a fase de investigação. Se o inquérito estiver concluído, a legitimidade então passa a ser exclusiva do MP. Mas em muitos casos o momento mais propício para obter a colaboração é na fase policial. Vale lembrar que todo acordo passa pela homologação do juiz, responsável por conceder efetivamente o “prêmio”. A colaboração não pode ser uma espécie de shopping onde o investigado procure a instituição que lhe conceda maiores benefícios.
ConJur — Vê ameaça à operação com as mudanças no governo?
Márcio Adriano Anselmo — Infelizmente, pela natureza da investigação e pela complexa estrutura que ela atingiu, é impossível não enxergar ameaças. Mas por outro lado, hoje temos um ministro da Justiça que é um dos maiores constitucionalistas brasileiros e certamente reconhece a importância do papel que exerce. Suas primeiras manifestações foram de absoluto apoio e respeito ao trabalho realizado. O que se espera é que a classe política como um todo tenha essa dimensão. Não é demais lembrar que, em tempos recentes, um outro ocupante do cargo, de indicação política, diga-se de passagem, disse que afastaria servidores devidamente concursados com o simples “cheiro” de vazamentos.
ConJur — A “lava jato” mudará a relação entre políticos e autoridades no Brasil?
Márcio Adriano Anselmo — Sou muito cético nesse sentido. O que precisa mudar é a forma de se encarar a política no Brasil. Há anos ouvimos o discurso da reforma política, mas ela sempre emperra em interesses não republicanos. Mas felizmente hoje há uma certeza: de que não existem investigados intocáveis.
ConJur — O MPF apresentou denúncia por difamação contra quem apontou haver escuta na cela do Alberto Youssef, o que foi rejeitado pela Justiça. Como isso se resolveu?
Márcio Adriano Anselmo — Há investigações nesse sentido, realizadas pela Corregedoria-Geral da Polícia Federal e pelo Grupo de Controle Externo do Ministério Público Federal. Buscamos nos manter afastados desses casos exatamente para evitar qualquer alegação de ingerência nas apurações. Espero que se concluam logo, quando serão adotadas as medidas cabíveis. Mas ainda há muito a ser esclarecido em relação a essas tentativas de obstruir a operação, com ou sem a participação de policiais.
ConJur — Tem algum mecanismo de investigação que a PF não dispõe e o senhor acha necessário?
Márcio Adriano Anselmo — As recentes alterações legislativas (leis 12.683, 12.830, 12.850 e 13.047, entre outras) foram muito importantes para a estruturação de ferramentas de investigação. Entendo que ainda necessitamos, com urgência, não de um mecanismo de investigação, mas de uma lei geral de cooperação internacional, a fim de disciplinar melhor esse instituto cada vez mais recorrente, uma vez que um projeto anterior até hoje ainda não foi levado ao Congresso e, ao que eu saiba, existe outro em discussão no âmbito do Ministério da Justiça. No mais, precisamos é efetivamente instrumentalizar e capacitar horizontalmente para que esses mecanismos sejam utilizados.
ConJur — Delegado de polícia deve poder firmar acordo de delação premiada?
Márcio Adriano Anselmo — Não tenho dúvida quanto a isso e acredito que essa será a posição do Supremo na ADI que foi recentemente ajuizada. A argumentação usada na ação é extremamente frágil. Dizer que a colaboração premiada firmada pelo delegado ofende o princípio acusatório beira o absurdo. Até porque, se o princípio acusatório fosse realmente a preocupação, o próprio Ministério Público procuraria cuidar só da fase da ação penal, não querendo fazer suas próprias investigações preliminares, pois aí você coloca em uma única parte a função de investigar e de acusar, com a clara tendência em se buscar elementos a se corroborar uma tese de culpa já abraçada.
ConJur — Quais mecanismos institucionais garantem a autonomia da PF hoje?
Márcio Adriano Anselmo — Em termos de autonomia investigativa o delegado tem a garantia legal de não sofrer interferências, contudo, há outros meios de se interferir em uma investigação. E nesse ponto releva a obtenção de autonomia funcional, administrativa e financeira. Veja-se que, até a saída do ministro da Justiça anterior (Aragão), a Polícia Federal era obrigada a comunicar as movimentações de pessoal. Toda deflagração de uma fase ostensiva gera uma movimentação de pessoal. Esse tipo de informação fatalmente pode ser usado para o controle ilegítimo. Não há qualquer argumento razoável para que um órgão que baseia suas ações na compartimentação tenha que se submeter a esse tipo de controle prévio. Além disso, há necessidade de outras garantias como a inamovibilidade, prevista timidamente na Lei 12.830/13. Alguns diplomas legais foram muito importantes, mas ainda há muito a avançar, como a fixação de um mandato para o diretor-geral e a disciplina de um mecanismo para escolha que evite indicações políticas.
ConJur — A associação de delegados pretende fazer uma indicação de lista tríplice, apesar do ministro Alexandre de Moraes ter anunciado que vai manter o diretor-geral Leandro Daiello. Não pode criar um atrito?
Márcio Adriano Anselmo — Ao apresentar um processo de indicação por meio de lista tríplice, a associação busca trazer um critério técnico e isento para a indicação do dirigente máximo do órgão, assim como funciona em diversos outros órgãos. Entendemos que a seleção por meio desse processo é uma importante demonstração de fortalecimento da instituição. O atual diretor-geral, que acredito ser um dos mais longevos da história da Polícia Federal, tem realizado o seu trabalho e sua permanência por tanto tempo, mesmo num período conturbado como foi o da operação “lava jato”, é a prova disso. Durante todo esse tempo não só a classe dos delegados quanto a própria Polícia passou por um período de amadurecimento muito grande. Acredito que as declarações do ministro tenham sido num contexto de afastar o temor da sociedade quanto à eventuais ingerências na operação ”lava jato”. A formação de lista tríplice permite um critério técnico e isento de indicação, motivo pelo qual não acredito em atrito nesse sentido, tanto que há, a título de exemplo, candidatos que exerceram funções relevantes na atual gestão.
ConJur — A PEC 412 é necessária?
Márcio Adriano Anselmo — Eu não diria necessária, mas indispensável. A PF alcançou um grau de excelência comparável aos melhores corpos policiais do mundo. Por outro lado, vive a cada ano sujeita a cortes orçamentários que prejudicam em muito o planejamento das atividades. . Um eventual corte orçamentário, como na área de investimentos, que foi o que sofreu a PF nos últimos anos, afeta a abertura de novas unidades, sobrecarrega as existentes, e reflete nas investigações. Ainda nesse mesmo exemplo, veja que a PF não consegue acompanhar o mesmo ritmo de interiorização da Justiça Federal e do Ministério Público Federal, justamente porque não tem recursos para a abertura de novas unidades. Se o Executivo não concorda com a abertura de concursos, se decide manter o mesmo número de policiais de décadas atrás, com o crescimento natural da população e dos problemas de segurança, isso também é uma forma de interferência pois sobrecarrega-se novamente os poucos que devem dar conta de muito. Cremos que o Congresso Nacional aprovará a PEC 412, que traz a previsão de autonomia funcional, orçamentária e administrativa à Polícia Federal, e poderemos assim oferecer um melhor retorno à sociedade brasileira, notadamente no combate à corrupção.
ConJur — Os agentes da PF acreditam que um dos interesses da tal da PEC da Autonomia é “fugir” do controle externo feito pelo Ministério Público Federal. Faz sentido? Por quê?
Márcio Adriano Anselmo — A autonomia basicamente diz respeito a autogerência orçamentária e financeira e à desvinculação do Ministério da Justiça, como basicamente já existe em outros órgãos federais como a Defensoria Pública da União. Não há qualquer alteração ao controle externo que deve ser feito pelo Ministério Público. A Polícia Judiciária certamente continuará sendo um dos órgãos públicos mais controlados do país. Ninguém defende um órgão incontrolável. Isso é discurso de dirigente sindical que não tem qualquer preocupação com o funcionamento do órgão e que não encontra qualquer amparo nos fatos. Sugerimos a quem faz esse tipo de crítica que busque conhecer o texto da PEC 412.
ConJur — A PF está mais independente em suas investigações no combate à corrupção? Quando essa independência passou a crescer?
Márcio Adriano Anselmo — As investigações têm evoluído, mas ainda há muito o que se avançar. Somente nesse mês tivemos a criação das delegacias de combate à corrupção em todos os estados (que na verdade existiam com outro nome, mas em vários lugares apenas de maneira informal), e, ainda assim, como uma conversão do que eram as unidades de combate a crimes financeiros. Investigações de corrupção e crimes financeiros demandam um grau elevado de especialização e recursos humanos, o que nem sempre é possível, tendo em vista a imensa gama de atribuições da PF. Muitos dos avanços nessa área têm sido reflexo do esforço pessoal dos que nela atuam, como por exemplo o desenvolvimento de metodologias de investigação, de bases de dados para consulta etc. O combate a corrupção não pode ser prioridade apenas no discurso. Veja, a título de exemplo, que, na estrutura da Polícia Federal, enquanto áreas como o combate ao tráfico de drogas e polícia fazendária tem o status administrativo de coordenação geral, a área que cuida do combate à corrupção (desvio de recursos públicos), era, até esse mês, um mero serviço. A autonomia administrativa poderia facultar ao gestor melhor equacionar essas estruturas sem que precisasse recorrer à toda a burocracia do poder executivo. Há anos se busca uma melhor estruturação dessa área na PF e os projetos acabam ficando pelo caminho.
ConJur — O que é capaz de impedir uma eventual interferência do poder político no trabalho da PF?
Márcio Adriano Anselmo — Autonomia funcional, orçamentária e financeira é o principal, para que a instituição não necessite “mendigar” recursos ou possa planejar suas ações sem estar submetida a “cortes sazonais” em seu orçamento. O processo de escolha do dirigente sem interferências políticas também é muito importante para evitar esse tipo de ingerência, muito comum em órgãos públicos. Por isso considero o mandato para o dirigente, associado ao critério de escolha pelos pares, como por exemplo, com a formação de lista tríplice, a melhor opção. Felizmente foi garantida por lei a direção do órgão por um integrante da carreira, mas ainda assim quanto mais medidas forem instituídas para blindar a instituição melhor esta poderá exercer o seu trabalho. Ainda sobre autonomia funcional, é importante que o dirigente da instituição detenha autonomia para indicar os seus diretores, coordenadores e superintendentes, entre outros, sem a necessária aquiescência de outros órgãos, como no caso da Casa Civil, por exemplo. Afinal, o diretor-geral deve ter a autonomia de escolher e priorizar critérios técnicos e meritocráticos de indicação. Pudemos testemunhar inúmeras ações em época recente de tentativas declaradas de interferências em diversos órgãos, o controle da Polícia certamente é um objeto de “desejo” de quem busca agir na ilegalidade.
ConJur — PF sempre briga contra o poder de investigação do MP. Como é a convivência investigativa das duas forças?
Márcio Adriano Anselmo — Cada instituição deve atuar no campo de suas atribuições. Polícia Judiciária investiga e Ministério Público acusa. Excepcionalmente, o Ministério Público até pode investigar, mas deve fazê-lo em situações verdadeiramente excepcionais. Importante destacar que excepcional não quer dizer seletivo. Deve haver algum elemento que justifique a atuação do MP na investigação, até mesmo porque ela provoca um forte desequilíbrio na paridade de armas. Na minha opinião, o MP deve buscar o fortalecimento da polícia judiciária e, infelizmente, o que temos visto ocorrer é exatamente o contrário, como aconteceu recentemente com várias ADIs ajuizadas pelo procurador-geral da República (como por exemplo a que ataca a equiparação dos delegados do Espírito Santo como carreira jurídica, que é um diploma legal de 2013 e somente agora vem a ser questionado; o mesmo acontece em relação à constituição do Estado de São Paulo, cuja alteração é ainda mais antiga, datada de 2012). Isso é um contrassenso. Uma polícia judiciária forte vai garantir uma investigação criminal eficiente, permitindo ao MP exercer sua função constitucional de órgão de acusação.
ConJur — O MP sabe investigar? Quais devem ser os seus limites?
Márcio Adriano Anselmo — Entendo que as instituições têm suas funções precípuas. A Polícia Judiciária é o órgão constitucionalmente vocacionado a investigar crimes. Óbvio que com o auxílio de diversos outros órgãos, como a Receita Federal, Tribunal de Contas, Controladoria-Geral da União etc. A função do MP é acusação. Em situações excepcionais, não vejo óbice que possa também investigar, desde que submetido a um regramento de suas ações. Hoje quem regulamenta a investigação no âmbito do Ministério Público é o próprio Ministério Público. Não há lei alguma. Então você pode ser investigado em um procedimento ministerial, ter sua vida devassada durante anos, nada é encontrado, e depois o próprio MP arquiva. As investigações policiais tem regramento legal e são submetidas periodicamente ao MP e ao Judiciário, mas as investigações exclusivas do MP?
ConJur — Quais seriam as situações excepcionais que o MP poderia investigar?
Márcio Adriano Anselmo — Esse tema precisa ser debatido e, principalmente, regulado em lei. Entendo que a atuação do MP na atividade de investigação deve ser suplementar à da Polícia Judiciária. Quando a atuação desta deixar de responder a contento, caberia a atuação do MP. Mas nisso reforço: a polícia judiciária necessita independência e garantias. Só assim pode ser evitado que sejam instrumentalizadas e possam cumprir sua função como órgão de Estado. E nisso vem novamente o papel negativo de algumas posturas por parte do MP de diminuir a atuação da polícia judiciária, como, por exemplo, negar a capacidade postulatória claramente prevista em lei.
ConJur — Esse tom messiânico no combate à corrupção compromete a missão do MP de promover a Justiça?
Márcio Adriano Anselmo — E o combate à corrupção não é uma forma de se promover a Justiça? Quantas pessoas morrem em leitos de hospitais ou sequer conseguem atendimento por causa do dinheiro desviado da saúde? Quantas pessoas deixam de ter um ensino de qualidade em razão do desvio de verbas de educação? O que dizer quando se prova que grande parte das obras públicas no país são objeto de desvio de recursos? Como acreditar em políticas públicas quando na verdade em grande parte mascaram mecanismos voltados à corrupção? Acredito, sim, que combater a corrupção é uma forma de se fazer justiça.
ConJur — A PF tem diretrizes para investigar. O MPF deveria tê-las?
Márcio Adriano Anselmo — A investigação pela polícia judiciária, como um todo, é extremamente regrada e controlada. Já a investigação realizada diretamente pelo Ministério Público (por meio dos PICs) praticamente não possui regramento, não possui controle. Muitas vezes passa anos engavetada e, quando não tem mais solução, é enviada para a polícia, problema esse já alertado pela doutrina. Como já frisei, se não houver regramento legal, o MP instaura uma investigação, encerra, ninguém sabe o que houve, quem foi investigado, porque arquivou. O que é ainda pior é quando a investigação do MP corre em paralelo com um inquérito policial, e os dois casos não se “conversam”. Há então diligências em duplicidade, gastos desnecessários de recursos públicos, quando na verdade tudo poderia estar concentrado no inquérito policial, sob a supervisão do Judiciário e do próprio MP.