Carvalho e Silva Advogados

É preciso aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor

Observando as lições das economias desenvolvidas de crédito, o Senado Federal nomeou uma comissão de juristas para atualizar o CDC nas temáticas do comércio eletrônico e superendividamento, expandindo os direitos e os princípios conquistados nos primeiros 20 anos do CDC[1].

O ministro Herman Benjamin, presidente da comissão de juristas, em seu discurso no ato de instalação da comissão, destacou a necessidade de atualização para melhor proteger os consumidores nas matérias que são, hoje, essenciais ao consumo, mas que não faziam parte da realidade em 1990:

“Depois de 20 anos de vigência, o CDC não deixa, como qualquer lei, de ser prisioneiro de seu tempo. Apesar das normas visionárias, não havia como prever em 1990 o crescimento exponencial das técnicas de contratação à distância, as transformações tecnológicas e o crescente comércio eletrônico de consumo assim como imaginar a democratização do crédito, fenômeno que amplia a facilidade de acesso a produtos e serviços, superando esquemas elitistas e popularizando sofisticados contratos financeiros e de crédito.Esta nova realidade brasileira coloca a necessidade de aperfeiçoar os mecanismos existentes de apoio aos consumidores, especialmente os preventivos, com o intuito de reduzir conflitos, sobretudo no terreno do superendividamento”[2].

Hoje, não é exagero considerar o contrato de crédito como um “contrato existencial”, uma vez que se tornou imprescindível na sociedade assim como o contrato de trabalho e o contrato de locação, todas relações de longa duração e vinculados à dignidade do consumidor, do trabalhador e do locatário. No entanto, se a democratização do crédito possibilitou a inclusão e a participação no mercado de consumo, de outro lado propiciou condições favoráveis para o superendividamento, fenômeno que agrava a vulnerabilidade de relações e consumidores e ganha visibilidade no Brasil somente após a década de 1990.

Na doutrina, o superendividamento é caracterizado pelas “situações em que o devedor se vê impossibilitado, de uma forma durável ou estrutural, de pagar o conjunto de suas dívidas, ou mesmo quando existe uma ameaça séria de que não o possa fazer no momento em que elas se tornarem exigíveis”[3]. Algumas causas são apontadas para esse fenômeno cada vez mais recorrente em todo o mundo, dentre elas a pulverização do crédito, a insuficiência de regulação do mercado, a redução das condições socioeconômicas, a concessão de crédito sem avaliação da capacidade de reembolso do consumidor, entre outras causas relacionadas à assimetria informativa e educação financeira, todas, sem dúvida resultantes de uma conjuntura econômica com a ampliação do aumento do endividamento das famílias segundo a lógica do novo capitalismo no plano estrutural.

Os poderes públicos preocupam-se, cada vez mais, com as repercussões negativas do superendividamento, pois ultrapassa a pessoa do devedor, atingindo a sua família e a sociedade. Tem como consequência a baixa na produtividade e dificuldade de reinserção no mercado de trabalho, estresse, problemas conjugais, problemas relacionados à saúde, além da exclusão econômica e social. Em situações extremas, pode levar ao comprometimento da subsistência da família.

Tratando-se de um fenômeno global, ganhou destaque internacional. Diretrizes da ONU, revisadas no ano de 2015, recomendam e incentivam a intervenção do poder público na proteção dos consumidores e crédito tendo em vista o risco de superendividamento[4]. Para enfrentar a crise financeira mundial, o Banco Mundial recomenda, inclusive, a adoção de procedimentos para o tratamento do superendividamento porque proporcionaria aos credores maior reembolso das dívidas que as ações individuais de cobrança e execução, “aliviaria” a pressão dos credores sobre o devedor, incentivando-o a voltar para o trabalho formal, incentivaria os credores a assumir uma postura mais responsável na concessão de crédito, além de preservar o mínimo existencial dos devedores[5].

No cenário nacional não é diferente. A preocupação com o superendividamento vem se acentuando nos últimos tempos. As pesquisas sobre o crédito ao consumidor, iniciadas em 2003 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul[6], confirmaram que o acesso ao crédito nem sempre proporciona a inclusão social. O endividamento sem o aumento correspondente da renda, em ambiente de crise financeira, desemprego e crescimento da pobreza, entre outros fatores sociais e econômicos, pode levar ao indesejado superendividamento.

O Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) teve importante participação no desenvolvimento científico do tema e da sua concretização no país na conjuntura da significativa expansão do crédito no Brasil.

No congresso do Brasilcon em comemoração aos 15 anos de vigência do CDC, o superendividamento foi um dos temas destacados a merecer complementação na lei protetiva. Cinco anos depois, ao comemorar 20 anos do CDC, o Brasilcon ofereceu ao público o Anteprojeto de Lei Acadêmico, dispondo sobre “a prevenção e o tratamento das situações de superendividamento dos consumidores, pessoas físicas e de boa-fé”. A proposta, fruto de pesquisas acadêmicas e práticas contribuiu, anos mais tarde, para a atualização do CDC[7].

Observando as lições das economias desenvolvidas de crédito, a comissão de juristas instituída no Senado Federal, em 2 de dezembro de 2010, foi encarregada do aperfeiçoamento legislativo no sentido de ampliar os direitos do consumidor. Com base no trabalho da comissão, o Projeto de Lei 283/2012 do Senado Federal propõe novas normas com a finalidade de prevenir o superendividamento, promover o acesso ao crédito responsável e o tratamento global em audiência. As regras propostas valorizaram a informação da parte vulnerável e focaram, sobretudo, na inclusão com medidas que visavam integração do consumidor na sociedade e o acesso igualitário aos bens e serviços.

E, para incluir os superendividados, adotou-se um “modelo social”, de regulação, capaz de reconhecer a presença de uma vulnerabilidade especial a merecer proteção, diferentemente do modelo europeu “liberal”, que tem como pressuposto um consumidor “racional”[8]. Mais do que a vulnerabilidade técnica ou informativa, jurídica ou fática, sobressai a “vulnerabilidade existencial” dos superendividados que necessitam de proteção. Nesse particular, Bruno Miragem destaca que[9] as dimensões que assume e potenciais efeitos pessoais, familiares e sociais que envolvem os contratos de crédito, a proteção do consumidor de crédito extravasa a finalidade protetiva meramente negocial — de proteção do contratante vulnerável em face de uma dada posição ou interesse econômico legítimo — para assumir caráter existencial. A vulnerabilidade agravada do consumidor de crédito e de sua família na realidade atual faz com que nas relações de consumo se observe a projeção do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como de eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas[10].

No XIII Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor – Brasilcon, em comemoração aos 25 anos do CDC, recentemente em maio de 2016, foi aprovada moção de aprovação imediata dos projetos de Lei de Atualização do Código de Defesa do Consumidor, especialmente o do PLs 283/2012, para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento do consumidor no Brasil.

Esperamos que, diante da urgência e necessidade social, o Poder Legislativo se sensibilize com a exclusão social causado pelo superendividamento, aprovando as normas que visam preveni-lo, porque só assim estaremos na vanguarda da defesa dos consumidores de crédito, concretizando “a função distributiva do CDC como instrumento de justiça social, de combate à exclusão e da pobreza no país”[11].


[1] A comissão de juristas presidida pelo ministro Antonio Herman Benjamin teve como membros Claudia Lima Marques (relatora-geral), Ada Pellegrini Grinover, Leonardo Roscoe Bessa, Roberto Augusto Castellanos Pfeifer e Kazuo Watanabe.
[2] BRASIL. Congresso. Senado. Relatório-Geral da Comissão de Juristas do Senado Federal para Atualização do Código de Defesa do Consumidor. Brasília, 2012. p.9.
[3] MARQUES, Maria Manuel Leitão; NEVES, Vitor; FRADE, Catarina; LOBO, Flora; PINTO, Paula; CRUZ, Cristina. O Endividamento dos Consumidores. Coimbra: Livraria Almedina, 2000, p. 2.
[4] A Diretriz 40 foi incluída determinando que os Estados-membros devem velar para que os procedimentos de solução sejam rápidos, transparentes, justos e acessíveis aos consumidores inclusive nos casos de superendividamento.
[5] MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de. Nota sobre as conclusões do Banco Mundial em matéria de superendividamento dos consumidores pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 89, set. 2013.
[6] MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli (Coord.).Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. (Biblioteca de Direito do Consumidor, v. 29).
[7] MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Karen Danilevicz. Anteprojeto de Lei dispondo sobre a prevenção e o tratamento das situações de superendividamento de consumidores pessoas físicas de boa-fé. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, n. 73, p. 345-367, jan./mar. 2010.
[8] RAMSAY, Iain. Models of consumer bankruptcy: implications for research and policy. Journal of Consumer Policy, Orem, Utah, n. 20, p. 269-287, 1997.
[9] MIRAGEM, Bruno; LIMA, Clarissa Costa de. Patrimônio, contrato e proteção constitucional da família: estudo sobre as repercussões do superendividamento nas relações familiares. Revista de Direito do Consumidor, n. 90, p. 91-115, nov./dez. 2013.
[11] BRASIL. Congresso. Senado. Relatório-Geral da Comissão de Juristas do Senado Federal para Atualização do Código de Defesa do Consumidor. Brasília, 2012. p.9.