Precisamos de uma profunda reforma na cultura policial
“De repente, outro policial que corria em sentido contrário ao nosso aproximou-se e, bem em frente à câmera, desferiu um soco sobre o ferimento do rapaz.
– Socorro, tio, eu estou ferido – grita o rapaz virando-se para a câmera. É um menor que aparenta 15 anos, negro, franzino. Usa bermuda sem camisa. O ferimento na barriga, descobrimos depois, é consequência de um tiro que havia levado dias antes em uma briga na mesma favela. Tentamos exigir uma explicaçãoo pela violência contra um rapaz ferido e algemado, mas não conseguimos nos aproximar dos agressores, que foram cercados pelos colegas.” Relato de Caco Barcellos em 20 de novembro de 1986. [1]
Algum tempo atrás, quando passei quase um ano estudando o sistema penal na Holanda, escrevi para a ConJur minhas impressões quanto as diferenças entre o sistema carcerário europeu e o brasileiro. Longe de qualquer demagogismo quanto às razões das prisões holandesas serem tão melhores do que as brasileiras, meu principal questionamento, título daquele artigo, estava em perguntar até quanto continuaríamos tratando nossos presos com raiva e vingança[2].
Depois de visitar o Pieter Baan Center, uma prisão holandesa, fui direto para a biblioteca da faculdade. Pus em linhas imediatamente todas as minhas impressões quanto ao sistema carcerário brasileiro frente ao tratamento holandês. Me frustrara lendo que nossos manicômios judiciários eram “casas dos mortos” e que a fundação casa, a par de não ter grades, ainda mantinha vícios da época Febem. Tudo o que eu podia fazer, como hoje, era dizer sobre minhas impressões das diferenças entre os tratamentos penais na Europa, que tanto glorificamos, e nas terras tupiniquins. É o mesmo que farei agora, mas quanto a policia.
Em primeiro lugar, não se engane, caro leitor, o poder de polícia causa efeitos colaterais devastadores mundo afora. Mas imagine que está na Holanda e ouça, por todos os jornais e noticiários televisivos que um garoto de dez anos foi assassinado pela polícia, dentro de um carro, depois de supostamente ter efetuado três disparos contra a patrulha que, em reação, revidou contra o carro já batido.
Eu, nos laços que fiz com aquele país, aprendendo um pouco sua cultura, posso afirmar que o governador do Estado em questão — vivi no mais próspero e historicamente rico, a semelhança de São Paulo — seria imediatamente deposto, o chefe de polícia renunciaria ao cargo, o Rei Alexander, chefe de Estado, certamente viria a público para pedir escusas por um erro injustificável. Nada poderia servir de justificativa para ceifar a vida de uma criança de dez anos.
Situação bem diferente da vivida no estado de São Paulo.
Quem já disparou um revólver 38 pode testemunhar que a arma não é das mais fáceis. Como então um menino de dez anos teria puxado o gatilho três vezes, tomando o cuidado de subir o vidro depois dos dois primeiros disparos e abaixá-lo para o último, tudo enquanto dirigia? A falta de silogismo beira o desrespeito com a inteligência humana.
Em 30 anos não aprendemos nada. Continuamos tratando nossos delinquentes com raiva e vingança. Mesmo com os notáveis esforços de parte da sociedade civil organizada, o direito de defesa continua sofrendo derrotas diárias.
No último ano uma em cada quatro pessoas assassinadas na cidade de São Paulo foi morta pela polícia, com uma bala que você, caro leitor, contribuiu para pagar.[3] Em janeiro e fevereiro deste ano a policia militar matou duas pessoas por dia no estado.[4]
Se quisermos um país sério, com verdadeiro combate ao crime e respeito a democracia precisamos de uma profunda reforma na cultura policial, a começar pelo direito de defesa do cidadão. É apenas com de respeito a esse direito básico que se poderá mudar esses números. A primeira lição ao policial deveria ser esta: a defesa da sociedade passa antes — e principalmente — pela defesa do direito de defesa do cidadão, este é o único caminho para a garantia da democracia.
1 P. 347. Relato de Caco Barcellos de 20 de novembro de 1986. BARCELLOS, Caco, Rota 66 – 14a edição. Rio de Janeiro: Record, 2012.
2 “Tratamos nossos presos e doentes mentais com raiva e vingança” Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-mai-16/gustavo-pedrina-tratamos-nossos-presos-doentes-mentais-raiva-vinganca