Citada como exemplo, Alemanha espera trânsito em julgado para prender
Quem defende que a prisão possa ser executada já depois da decisão de segundo grau, mesmo ainda havendo recursos pendentes de julgamento, costuma citar os sistemas dos Estados Unidos e da França como mais eficientes. Lá, dizem, as prisões são executadas depois da primeira confirmação. O sistema da Alemanha, no entanto, pode ser mais “comparável” ao nacional. Citado como bom exemplo, o modelo alemão também espera o trânsito em julgado da condenação para prender.
A explicação é do advogado Luís Henrique Machado, criminalista e sócio do escritório Machado Ramos e Von Glehn Advogados. Ele é mestre e doutorando em Processo Penal pela Universidade de Humboldt, em Berlim, e conhece bem o sistema de execução do país.
O advogado explica que, embora o sistema alemão obrigue o trânsito em julgado para executar a pena, um processo é considerado terminado depois da decisão do Bundesgerichtshof (BGH), equivalente ao Superior Tribunal de Justiça brasileiro. Portanto, a Alemanha segue o mesmo padrão brasileiro: depois da decisão do juiz de primeiro grau, um recurso é analisado por um tribunal local e, por último, vai o recurso de revisão, chamado de Revision, ao BGH.
“É um recurso que possui natureza processual e tem efeito suspensivo, muito semelhante ao nosso recurso especial”, comenta Machado. “Na Alemanha, é incabível a execução das sentenças das instâncias ordinárias.”
A diferença está na participação da corte constitucional alemã. Lá, conta Machado, não existe recurso ao Tribunal Federal Constitucional. O que existe é a Reclamação Constitucional (Verfassungsbeschwerde) e, especialmente em matéria penal, a Revisão Criminal (Wiederaufnahme des Verfahrens).
Ambas só podem ser ajuizadas depois do trânsito em julgado das decisões, e não têm efeito suspensivo. As partes podem pedir que elas interrompam o trânsito em julgado, mas é raro que o Judiciário concorde, conta o criminalista.
Em pauta
A citação a sistemas internacionais tem sido frequente nos últimos meses por causa da guinada jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. Em fevereiro, a corte negou um pedido de Habeas Corpus e passou a entender que a prisão já pode ser executada depois da decisão de segunda instância.
Está na pauta desta quarta do Plenário o julgamento de duas ações que pretendem anular esse entendimento e voltar à jurisprudência anterior do STF, de que só depois do trânsito em julgado é que se pode executar a pena. Apesar de o inciso LVII do artigo da Constituição Federal dizer que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
No caso de fevereiro, por sete votos a quatro, o Plenário seguiu o voto do ministro Teori Zavascki, para quem depois da decisão do segundo grau encerram as possibilidades de discussão de materialidade, provas e fatos. Ao STJ e ao Supremo cabem apenas discussões de direitos e garantias. Portanto, não haveria prejuízo ao princípio da presunção de inocência.
O julgamento das ações pautadas para esta quarta já começou, mas só o relator, ministro Marco Aurélio, votou. E ele fez um pronunciamento duro, dizendo que seus colegas, ao autorizar a prisão antecipada, em hipótese que a Constituição não prevê, editou uma emenda constitucional ilegítima. “O abandono do sentido unívoco do texto constitucional gera perplexidades”, disse Marco Aurélio.
Caminho do meio
A obediência a uma ordem semelhante à do sistema alemão é um dos pedidos nas ações. Uma delas, de autoria do Partido Ecológico Nacional (PEN), sugere, caso o Supremo não declare a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que proíbe a prisão antes do trânsito em julgado, que se dê efeito suspenso suspensivo ao recurso especial, ajuizado no STJ.
Com isso, o partido pede um “meio termo” entre o que diz a Constituição e o que querem alguns ministros do Supremo. A ideia é que se mantenha o recurso extraordinário em matéria penal sem suspender o trânsito em julgado do processo. Mas que o recurso ao STJ tenha o poder de interromper o trânsito para que a pena não seja executada.
Lá fora
Com quase 700 mil presos, o Brasil é a maior população carcerária do mundo, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. Mas o quadro que preocupa especialistas é a quantidade de presos sem julgamento definitivo, que ultrapassa os 40% do total.
Em fevereiro, o ministro Luiz Fux, um dos que concorda com a antecipação da prisão, afirma que a cifra apenas representa a quantidade de presos que ainda não tiveram suas sentenças confirmadas pelo Supremo, como exige a Constituição.
Na mesma ocasião, o ministro Luís Roberto Barroso lembrou que “nenhuma democracia no mundo” espera a decisão de quatro instâncias para executar uma sentença condenatória. E fez citações aos sistemas norte-americano e francês. O mesmo fizeram os ministros Gilmar Mendes, Teori Zavascki e Luiz Edson Fachin.
Os argumentos foram “rebatidos” pelo decano da corte, o ministro Celso de Mello. Para ele, a Constituição brasileira “estabelece, de modo inequívoco, que a presunção de inocência somente perderá a sua eficácia e a sua força normativa após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.
“É por isso que se mostra inadequado invocar-se a prática e a experiência registradas nos Estados Unidos da América e na França, entre outros Estados democráticos, cujas Constituições, ao contrário da nossa, não impõem a necessária observância do trânsito em julgado da condenação criminal”, concluiu Celso.
Cidadãos presos
Os Estados Unidos têm a maior população carcerária do mundo, com 2,2 milhões de presos, dos quais 20% estão aprisionados sem julgamento. As informações são do World Prison Brief, banco de dados do Instituto de Pesquisas sobre Politica Criminal (ICPR), da Universidade de Londres, sobre a poplação carcerária mundial.
A França tem 69,3 mil presos, de acordo com o ICPR, conforme dados de julho deste ano. Deles, 28,9% são provisórios.
O que os dois países têm em comum com o Brasil é o crescimento da população carcerária durante o início dos anos 2000. Na França, a quantidade de presos subiu de 54 mil em 2000 para 72 mil em 2014. Nos EUA, os presos eram 1,9 milhão em 2000 e passaram a ser 2,2 milhões em 2012.
As semelhanças param aí. De 2014 para cá, França e EUA viram a quantidade de pessoas encarceradas cair. O Brasil seguiu em sua curva ascendente e viu a quantidade de presos subir quase triplicar entre 2000 e dezembro de 2014, quando era de 622 mil a população carcerária, conforme dados do Ministério da Justiça. Considerando a pesquisa do CNJ, em dois anos, foram presas 78 mil pessoas.
Já a Alemanha tem 64,4 mil presos, segundo dados de abril deste ano. E desses, 21% são presos provisórios. Com a diferença de que, de 2004 para cá, houve uma diminuição na população carcerária de 23%.
Mas, para além dos dados e semelhanças no sistema, Luís Henrique Machado não acredita em argumentos comparativos para resolver a questão. “No Brasil, a Constituição não dá nenhuma margem para interpretação”, diz.