A sanção por falta grave como impeditivo do indulto e da comutação
Por Paulo Henrique Drummond Monteiro e Alessa Pagan Veiga
A interpretação dos decretos presidenciais de indulto e comutação consiste em um dos mais árduos trabalhos dos atores jurídicos no âmbito da Execução Penal.
Isso porque em se tratando de instituto derivado do poder discricionário do Presidente da República, cujo decreto é tradicionalmente expedido todos os anos em data próxima ao natal, não há tempo suficiente para consolidação doutrinária e jurisprudencial sobre os termos contidos nos decretos.
A possibilidade de modificação no texto do decreto do ano subsequente constitui fator não convidativo para a doutrina, à vista da possibilidade de o trabalho hermenêutico tornar-se rapidamente obsoleto.
Nessa medida, trabalhos científicos sobre questões pontuais dos mencionados decretos, realizados por atores do sistema de justiça que militam na Execução Penal, consistem no mecanismo mais efetivo para a formação de um arcabouço teórico relevante sobre o tema.
O indulto e a comutação consistem no perdão coletivo, total ou parcial, da pena, de competência exclusiva do Presidente da República (artigo 84, XII da CR/88), que tem por consequência a extinção da punibilidade do agente (artigo 107, II, CP), no caso do indulto, ou a redução do montante de pena, no caso da comutação.
Uma das questões mais recorrentes no Judiciário consiste na análise do requisito subjetivo do indulto e da comutação uma vez que tal requisito é disposto de forma praticamente idêntica nos sucessivos decretos.
Além do cumprimento de determinada fração de pena, os decretos natalinos impõem a seguinte condição para o reconhecimento do perdão:
Decreto 8.615/2015:
Art. 5º A declaração do indulto e da comutação de penas previstos neste Decreto fica condicionada à inexistência de aplicação de sanção, reconhecida pelo juízo competente, em audiência de justificação, garantido o direito aos princípios do contraditório e da ampla defesa, por falta disciplinar de natureza grave, prevista na Lei de Execução Penal, cometida nos doze meses de cumprimento da pena, contados retroativamente a 25 de dezembro de 2015.
Sobre a interpretação deste dispositivo vige substanciosa controvérsia entre os juízes de primeira instância, quanto à situação em que a falta grave, cometida nos doze meses contados retroativamente a 25 de dezembro, tenha sido reconhecida somente em data posterior.
No dia a dia da Execução Penal são recorrentes as situações em que as referidas faltas são reconhecidas em juízo somente após a publicação do decreto.
Nessa situação questiona-se se é aplicável a restrição contida no dispositivo acima transcrito.
Em que pese haja certa divergência entre os juízes, razão não há para considerar que o indulto ou a comutação possa ser afastado nessa situação.
O decreto dispõe que a declaração do indulto/comutação fica condicionada à “aplicação de sanção”, “reconhecida pelo juízo competente”, “em audiência de justificação” em razão da prática de falta grave cometida nos doze meses de cumprimento de pena contados retroativamente a 25 de dezembro. A condição, portanto, não é a ocorrência da falta, mas sim o seu reconhecimento judicial, observado o contraditório e a ampla defesa.
Tal condição deve ser avaliada na data da publicação do decreto, uma vez que é neste momento que se adquire o direito ao perdão da pena, concedido pelo Chefe do poder executivo.
Caso não tenha havido o reconhecimento judicial de falta grave em audiência de justificação, garantido o contraditório e a ampla defesa até 25 de dezembro, não há impedimento ao indulto/comutação, ainda que a suposta falta tenha sido praticada nesse interregno. O direito ao perdão da pena não pode ser obstado por uma homologação tardia da falta grave.
Com efeito, diante da natureza jurídica da clemência presidencial (Perdão de Competência exclusiva do Chefe do Executivo, artigo 84, XII, CR/88), o direito à comutação e ao indulto se adquire com a publicação do decreto concessivo. Por essa razão, é nesse momento que deve ser avaliada a presença ou não dos seus requisitos.
Destaque-se que a decisão do juiz que reconhece o indulto ou a comutação tem natureza declaratória e não constitutiva. Ela apenas declara a presença de um direito que foi concedido pelo presidente da República na data da publicação do decreto.
Com efeito, a LEP dispõe em seu art. 192:
Art. 192.Concedido o indulto e anexada aos autos cópia do decreto, o Juiz declarará extinta a pena ou ajustará a execução aos termos do decreto, no caso de comutação. (grifo nosso).
Assim, constituindo-se o indulto ou a comutação como direito adquirido no momento de sua concessão pelo presidente da República, as condições impostas devem estar presentes neste mesmo momento.
Nesse sentido, ensina Rodrigo Roig:
Parece mais acertado considerar que o requisito subjetivo para concessão do indulto deve ser aferido no momento da publicação do decreto. Primeiramente em decorrência da própria natureza da decisão concessiva do indulto ou comutação, que tão somente declara o preenchimento dos requisitos previstos no decreto, extinguindo a punibilidade do apenado. Em segundo lugar porque a prática de falta disciplinar após a publicação do decreto não suspende, nem impede a concessão de indulto ou comutação, o que evidencia a publicação do decreto como momento de aferição dos requisitos. Por fim, não pode a pessoa condenada ficar indefinidamente à mercê do juízo da execução quanto ao momento em que este prolatará a decisão a respeito do indulto ou da comutação, sob pena de insegurança jurídica.[1]
José Arruda e Arthur Correa, na mesma linha destacam que:
Consoante os termos do decreto, ainda que o apenado tenha cometido falta grave no período preconizado pela norma, não tendo sido aplicada sanção e homologada pelo juiz, não pode questionar acerca da interrupção do prazo para efeito de indulto e/ou comutação.[2]
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais tem ratificado este entendimento nas suas decisões mais recentes:
AGRAVO EM EXECUÇÃO – DECRETO PRESIDENCIAL N.º 8.615/15 – INEXISTÊNCIA DE FALTA GRAVE REGULARMENTE HOMOLOGADA PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO NOS DOZE MESES ANTERIORES À DATA DETERMINADA NO DECRETO – PREENCHIMENTO DO REQUISITO SUBJETIVO – POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DO INDULTO. I. Nos termos do art. 5º, caput, do Decreto Presidencial nº 8.615/15, somente a falta grave regularmente homologada pelo juízo da execução nos últimos doze meses anteriores à publicação do Decreto impede a obtenção do indulto ou comutação de penas. AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL Nº 1.0024.14.021568-2/001 – COMARCA DE BELO HORIZONTE – AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS – AGRAVADO: WANDERSSON LOURENCO DOS SANTOS.23.09.2016
AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL – INDULTO – DECRETO 8.172/2013 – FALTA GRAVE NÃO HOMOLOGADA – REQUISITOS SUBJETIVOS PREENCHIDOS – INDULTO – CONCESSÃO – POSSIBILIDADE. Faz jus o reeducando ao benefício do indulto quando a suposta falta por ele cometida nos doze meses que antecederam a publicação do respectivo Decreto Presidencial não foi apurada e homologada.
AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL Nº 1.0079.12.062174-7/002 – COMARCA DE CONTAGEM-AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS – AGRAVADO: JOSÉ CARLOS MARQUES SANTANA. 23.09.2016
AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL – COMUTAÇÃO DE PENA – DECRETO PRESIDENCIAL Nº 8.172/13 – FALTA GRAVE NÃO HOMOLOGADA – ÓBICE AFASTADO – POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO PENAL. O cometimento de falta grave nos últimos doze meses, contados retroativamente da data da publicação do Decreto nº 8.172/13, que não foi apurada e homologada neste período, não impede a concessão do benefício de comutação de pena, devendo, dessa maneira, ser afastado o óbice imposto à concessão do benefício, cabendo ao Juízo da Execução Penal a aplicação da benesse.
AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL Nº 1.0301.14.013331-7/001 – COMARCA DE IGARAPÉ-AGRAVANTE: ROBERT AVELINO DA SILVA – AGRAVADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS.09.09.2016
O Superior Tribunal de Justiça também já firmou posicionamento:
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. FALTA DISCIPLINAR DE NATUREZA GRAVE. FUGA. HOMOLOGAÇÃO POSTERIOR À PUBLICAÇÃO DODECRETO PRESIDENCIAL. CARACTERIZADA A NULIDADE DA HOMOLOGAÇÃODA FALTA GRAVE. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. A configuração da falta de natureza grave enseja vários efeitos, entre eles: a possibilidade de colocação do sentenciado em regime disciplinar diferenciado; a interrupção do lapso para a aquisição de outros instrumentos ressocializantes, como, por exemplo, a progressão para regime menos gravoso; a regressão no caso do cumprimento da pena em regime diverso do fechado, além da revogação em até 1/3 do tempo remido. 2. Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal – no caso, fuga do estabelecimento prisional -, é imprescindível o reconhecimento da infração pelo juízo competente, mediante homologação de procedimento administrativo disciplinar, no prazo previsto no art. 4° do Decreto n. 7.648/2011, o que ocorreu apenas em data posterior à publicação do decreto presidencial. 3. Agravo regimental não provido. AgRg no HC 313105/MG. Rel. Min ROGERIO SCHIETTI. Dje 01.07.2015.
Há quem sustente, porém, que os requisitos devam ser analisados no momento da decisão judicial sobre o indulto/comutação. Se neste momento a falta grave não tiver sido ainda homologada, deveria ser reconhecido o benefício. Mas se a falta já tiver sido homologada mesmo que depois de 25 de dezembro, o perdão presidencial restaria obstado (nesse sentido, a 5ª turma do STJ: HC 350.021/SP, HC 346.248/MG).
Explica-se com um exemplo. Em 30 de janeiro de 2016 a defesa pediu o reconhecimento do indulto concedido em 25 de dezembro de 2015 pelo Decreto 8.615/2015. Há, porém, nos autos notícia de uma suposta falta, que teria sido praticada em 1 de setembro de 2015, ainda não reconhecida em juízo. Nesse caso, o juiz deveria deferir o pedido da defesa e reconhecer o indulto. No entanto, se o juízo reconheceu a falta em audiência de justificação em 15 de janeiro de 2016, por exemplo, deveria ele no dia 31 de janeiro de 2016 indeferir o pedido de indulto.
Veja que sob essa errônea interpretação, o direito ao indulto/comutação dependeria da discricionariedade do juiz em avaliar se julgará primeiro a falta grave ou o indulto/comutação.
Importante observar, porém, que após a expedição do decreto presidencial é impossível, sob um ponto de vista processual, que a falta seja julgada antes da análise do indulto/comutação, uma vez que este tem preferência sobre a análise de todos os incidentes da Execução Penal, ex vi do artigo 11, §3º do Decreto 8.615/2015:
§3º A declaração de indulto e de comutação das penas terá preferência sobre a decisão de qualquer outro incidente no curso da execução penal.
Como se vê, o perdão presidencial é questão prejudicial a qualquer outro incidente da Execução Penal.
Assim, expedido o Decreto em 25 de dezembro de 2015, o juiz da execução deve analisar o cabimento do indulto ou da comutação antes de analisar o incidente de apuração de falta grave[3] ou qualquer outro incidente.
Por essa razão, eventual homologação da falta em data posterior a 25 de dezembro sem a análise precedente do indulto/comutação é inválida em razão de vício processual, não podendo impedir o reconhecimento do indulto ou da comutação que lhe são prejudiciais.
Veja-se que, se a pena do sentenciado foi perdoada pelo presidente da República (indulto), qualquer incidente da execução resta prejudicado pela extinção da punibilidade. Lado outro, caso a pena do sentenciado tenha sido decotada pelo Decreto Presidencial (comutação), a análise da falta bem como todos os demais incidentes surtirão seus efeitos somente sobre a nova pena reduzida.
Retornando ao nosso exemplo, se a suposta falta praticada em 1 de setembro de 2015 não foi apurada até 25 de dezembro de 2015, não poderá sê-lo após esta data antes de ser analisado o cabimento de indulto ou de comutação veiculado no Decreto 8.615/2015. Não havendo homologação, é pacífico o entendimento da inexistência de impedimento ao indulto/comutação. Se houver, esta é inválida, também não impedindo o direito.
Assevere-se, ainda, que adotar entendimento contrário ao aqui esposado é aceitar frontal violação do princípio da presunção de inocência, cuja observância foi exigida pelo Decreto Presidencial ao conceder a clemência.
Com efeito, sob interpretação diversa, a mera notícia de suposta falta grave, ainda não processada e julgada, importaria em uma suspensão cautelar do reconhecimento do indulto já concedido pelo presidente da República, até a análise da falta, sem qualquer previsão legal.
Ou seja, presumir-se-ia a culpa, suspendendo-se o indulto ou a comutação já concedido pelo chefe do executivo, embora este em seu decreto tenha ressalvado que o impedimento do direito só ocorre nas situações em que a falta foi devidamente reconhecida em juízo, assegurados o contraditório e a ampla defesa.
Para além de toda essa argumentação teórica, convém, ainda, tecer algumas considerações de ordem prática.
Nesse ponto, não se pode argumentar que a falta grave, reconhecida tardiamente, perderia completamente o seu efeito caso não pudesse impedir o indulto e a comutação.
Isso porque tendo sido a falta disciplinar apurada em sede administrativa, o sentenciado já terá sofrido uma das sanções, a cargo da direção do estabelecimento prisional, dispostas no artigo 53 da LEP.
Ademais, reconhecida judicialmente a qualquer tempo, a falta dará ensejo a todos os demais efeitos legais (possível regressão de regime, perda de até 1/3 dos dias remidos, etc.), no caso de comutação, ou no caso de indulto, quando extinta a punibilidade em apenas uma das guias de execução.
Por fim, é importante destacar, sob uma ótica de redução dos danos, que o indulto e a comutação são institutos que causam seríssimos efeitos no status libertatis do agente, que não pode ficar à espera de uma condição temporal unilateralmente controlada pelo judiciário.
Aceitar que a falta homologada após a publicação do decreto seja capaz de impedir o indulto ou a comutação da pena é possibilitar que frágeis notícias de fato atrasem o reconhecimento de um direito que pode levar à imediata soltura do sentenciado.
Imaginemos que vários meses depois da publicação do decreto, o sentenciado seja absolvido da imputação de suposta falta ou então que a falta seja considerada média. Ainda que reconhecido tardiamente o indulto, e posto em liberdade o sentenciado, o tempo de encarceramento indevido não volta mais.
[1] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: Teoria Crítica. São Paulo: Saraiva, 2014, p.496;
[2] DA SILVA, José Adaumir Arruda; NETO, Arthur Corrêa da Silva. Execução penal. Novos rumos, novos paradigmas, Manaus: Aufiero, 2012, p.322.
[3] Nesse sentido, Min. Rogério Schietti Cruz em decisão liminar nos HCs 319541/SC e 314731/SC.