Finalmente é regulamentada prevenção à lavagem de dinheiro no mercado de arte
Foram tratadas na coluna anterior as questões básicas da lavagem de dinheiro no mercado de arte. Nessa semana entra em vigor a Portaria 396, de 15 de setembro de 2016 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que visa suprimir uma lacuna no ambiente de prevenção à lavagem de dinheiro, ao instituir a política de prevenção à lavagem de dinheiro no mercado de arte que, de acordo com sua ementa:
“Dispõe sobre os procedimentos a serem observados pelas pessoas físicas ou jurídicas que comercializem Antiguidades e/ou Obras de Arte de Qualquer Natureza, na forma da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998.”
A portaria foi publicada pelo Iphan, na condição de regulador do mercado de obras de arte, visando regular a conduta dos sujeitos obrigados a reportar operações suspeitas/atípicas sob sua supervisão. O tema também foi tratado no portal em artigo de Ricardo de Lima Melo Dantas,em que traça as linhas gerais da portaria.
A Portaria vem complementar o quadro normativo existente, notadamente quanto à comercialização de obras de arte, prevista pelo Cadastro Nacional dos Negociantes de Antiguidades e Obras de Arte (CNART), que consiste em um sistema informatizado gerenciado pelo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), com o objetivo de armazenar os dados de identificação pessoal dos negociantes, bem como dos objetos por eles comercializados, em cumprimento com os Artigos 26 e 27 do Decreto-Lei nº 25/1937 (que trata da organização e proteção ao patrimônio nacional).
Conforme já tivemos a oportunidade de expor, o CNART mantem o registro dos negociantes (pessoas físicas e pessoas jurídicas) e os agentes de leilões que exerçam, individualmente ou em sociedade empresarial, as atividades de compra, venda direta, em consignação, leilão, agenciamento, comércio eletrônico, importação ou exportação, ou por qualquer outra forma de contratação, de objetos de antiguidade, de obras de arte de qualquer natureza, de manuscritos e livros antigos ou raros.
Como parte da lógica do sistema de prevenção à lavagem de dinheiro, busca-se regular a utilização de setores da atividade econômica potencialmente lesivos. Há, portanto, a imposição de obrigações administrativas aos setores potencialmente lesivos selecionados pelo legislador, que atuarão na identificação e comunicação dessas operações elencadas pela autoridade administrativa como suspeitas ou atípicas.
Para gerenciar essa estrutura de informações, é incumbida a estrutura administrativa conhecida internacionalmente como unidade de inteligência financeira, que no Brasil recebeu o nome de Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e que tem por finalidade receber essas comunicações dos sujeitos obrigados.
O compartilhamento de responsabilidade entre o Estado e os setores da atividade econômica utilizados para a lavagem de dinheiro constitui um importante fator de inibição da utilização desses setores na lavagem de dinheiro, sobretudo do Sistema Financeiro Nacional, que canaliza o fluxo financeiro e consiste no primeiro caminho a ser utilizado pela atividade criminosa para circulação de valores.
O artigo 9º da Lei n° 9.613 indica as pessoas jurídicas sujeitas ao regime administrativo que, além de instituições financeiras, alcança diversos setores da atividade econômica potencialmente lesivos em razão da circulação de valores, entre eles o mercado de obras de arte.
Em resumo, as obrigações administrativas consistem na manutenção de um cadastro de clientes atualizado e ao registro das operações que se enquadrem em determinados patamares fixados pelas autoridades administrativas, via de regra o COAF ou Banco Central, na grande maioria dos casos. No caso do mercado de obras de arte, há regulador específico, o Iphan, responsável pela edição da Portaria 396.
O artigo 1° da Portaria estabelece que são os “sujeitos obrigados” a reportar operações:
“As pessoas físicas ou jurídicas que comercializem objetos de Antiguidades ou Obras de Arte de Qualquer Natureza, de forma direta ou indireta, inclusive mediante recebimento ou cessão em consignação, importação ou exportação, posse em depósito, intermediação de compra ou venda, comércio eletrônico, leilão, feiras ou mercados informais, em caráter permanente ou eventual, de forma principal ou acessória, cumulativamente ou não, devem observar as disposições constantes na presente Portaria, conforme estabelecido na Lei nº 9.613, de 1998.”
Observa-se, portanto, um conceito bastante amplo de sujeito obrigado, visando abarcar o máximo de situações, como por exemplo o caso daqueles que comercializem objetos indiretamente, como por exemplo, os comerciantes que recebem obras em consignação. A portaria dispõe ainda que todas as pessoas que se enquadrem no artigo primeiro devem estar cadastradas no CNART. Esses sujeitos devem implementar os seguintes procedimentos:
I – identificar os clientes e demais envolvidos nas operações que realizarem;
II – obter informações sobre o propósito e a natureza das relações de negócio;
III – identificar o beneficiário final das operações;
IV – identificar as operações ou propostas de operações passíveis de comunicação, nos termos do Art. 11 da Lei nº 9.613, de 1998;
V – capacitar e treinar empregados;
VI – verificar periodicamente a eficácia dos procedimentos e controles internos adotados; e
VII – implementar Códigos de Conduta.
Há uma distinção entre as pessoas jurídicas com quadro de funcionários superior a 10 (dez), que deverão dispor desses procedimentos e controles formalizados expressamente e com aprovação da autoridade máxima na gestão da empresa.
As obrigações de prevenção à lavagem de dinheiro, em resumo, consistem em dois eixos: o cadastro dos clientes e o registro das operações que, ao se enquadrarem no instrumento normativo, devem ser objeto de comunicação ao Coaf. O artigo 4° da portaria estabelece que:
“Nas operações de valor igual ou superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), as pessoas de que trata o Art. 1º devem manter em arquivo próprio cadastro de seus clientes e dos demais envolvidos nas negociações que realizarem, inclusive representantes, procuradores, consignantes, donos das obras, intermediários, leiloeiros e beneficiários finais, em relação aos quais deve constar no mínimo:
I – se pessoa física:
a) nome;
b) endereço eletrônico e/ou página na internet;
c) endereço completo (logradouro, complemento, bairro, cidade, unidade da federação, CEP), telefone;
d) número do documento de identificação, nome do órgão expedidor e data de expedição, se brasileiro; ou dados do passaporte ou carteira civil, se estrangeiro;
e) número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas – CPF; e
f) enquadramento na condição de pessoa exposta politicamente, nos termos da Resolução nº 16 do Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF de 28 de março de 2007 se for o caso.”
No caso de pessoa jurídica, inclui-se ainda atividade econômica desenvolvida e eventual nome de controladora, controlada ou coligada, se for o caso.
Para além do cadastro de seus clientes, os sujeitos obrigados devem também manter o registro das operações em valor igual ou superior a R$ 10.000,00 ou seu equivalente em moeda estrangeira (ou ainda conjunto de operações que alcance esse patamar mensal pelo mesmo cliente), com os seguintes dados:
I – nome do cliente e dos demais envolvidos, inclusive beneficiários finais ou terceiros pagantes, nas negociações que realizarem ou intermediarem;
II – descrição pormenorizada dos bens/mercadorias;
III – valor da operação;
IV – data da operação; e
V – forma e meio de pagamento.
Quanto à obrigação de reportar operações suspeitas/atípicas, há que se distinguir dois casos: o primeiro, obrigatório, independe de qualquer análise por parte do sujeito obrigado, quando a operação for liquidada em espécie dentro dos limites estabelecidos; no segundo caso, os sujeitos obrigados devem analisar as operações que se enquadrem na lista do artigo 7° e, considerando suspeitas, devem ser objeto de comunicação ao COAF:
I. Repetidas operações em valor próximo ao limite mínimo estabelecido para registro, conforme estabelecido pelo caput do Art. 5º.
II. Operação em que o proponente não se disponha a cumprir as exigências cadastrais ou tente induzir os responsáveis pelo cadastramento a não manter em arquivo registros que possam reconstituir a operação pactuada.
III. Operações com pessoas sem tradição no mercado movimentando elevadas quantias na compra e venda de bens objeto desta Portaria.
IV. Operação em que o proponente não aparente possuir condições financeiras para sua concretização (“laranja”, “testa de ferro”).
V. Operação em que seja proposto pagamento por meio de transferência de recursos entre contas no exterior, quer permitindo ou não o rastreamento de dinheiro.
VI. Proposta de superfaturamento ou subfaturamento em transações com os bens objeto desta Portaria.
VII. Operação ou proposta envolvendo pessoa jurídica cujos beneficiários finais, sócios, acionistas, procuradores ou representantes legais mantenham domicílio em jurisdições consideradas pelo Grupo de Ação contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo – GAFI de alto risco ou com deficiências estratégicas de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, bem como países ou dependências consideradas pela Secretaria da Receita Federal do Brasil – RFB de tributação favorecida e/ou regime fiscal privilegiado.
VIII. Operação de compra ou venda cujo vendedor ou comprador tenha sido anteriormente dono do mesmo bem
IX. Operação cujo pagamento ou recebimento se dê em nome de terceiros, pessoa física ou jurídica estrangeira em “paraísos fiscais”, caso isso esteja sendo usado para mascarar a verdadeira identidade do comprador, vendedor ou proprietário dos bens objeto desta Portaria.
X. Quaisquer operações que, considerando as partes e demais envolvidos, os valores, os modos de realização, o meio e a forma de pagamento, ou a falta de fundamento econômico ou legal, possam configurar sérios indícios da ocorrência dos crimes previstos na Lei nº 9.613, de 1998, ou com eles relacionar-se.
XI. Todas as operações, propostas ou realizadas, envolvendo as situações descritas na Lei nº 13.260, de 2016 (Lei Antiterrorismo).
As comunicações devem ser feitas no prazo de 24 (vinte e quatro) horas a contar da verificação da ocorrência (art. 8°) e, como regra, sem a ciência ao comunicado. Há ainda a instituição, como em outros casos de sujeitos obrigados, a obrigação de comunicação de inexistência de operações suspeitas ou atípicas pelos sujeitos obrigados que, durante o ano civil, não efetuarem nenhuma comunicação ao COAF.
Por fim, há exigência, no artigo 10, da guarda dos cadastros e registros de operações pelo prazo de cinco anos.
O coração da regulação do setor encontra-se no artigo 7° da Portaria, que visa exaurir as tipologias que podem ser utilizadas para a lavagem de dinheiro no mercado de arte. Observa-se que estão abarcadas, a título de exemplo, a operação por meio de “laranjas” ou mesmo o pagamento realizado no exterior, figuras tão comuns evidenciadas na prática.
A efetiva implementação do ambiente de prevenção no mercado de obras de arte é fundamental para tornar o ambiente menos propício à lavagem de dinheiro. Assim, resta imperioso a atuação firme do Iphan no sentido de fiscalizar o devido cumprimento da portaria, cujas sanções aplicáveis encontram-se previstas no Art. 12 da Lei nº 9.613, de 1998, que prevê:
I – advertência;
II – multa pecuniária variável não superior:
a) ao dobro do valor da operação;
b) ao dobro do lucro real obtido ou que presumivelmente seria obtido pela realização da operação; ou
c) ao valor de R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais);
III – inabilitação temporária, pelo prazo de até dez anos, para o exercício do cargo de administrador das pessoas jurídicas referidas no art. 9º;
IV – cassação ou suspensão da autorização para o exercício de atividade, operação ou funcionamento.
Parte do vácuo existente no setor, ao menos sob a perspectiva de regulamentação do ambiente de prevenção fora suprido pela Portaria ora em comento. Espera-se que a mesma possa ser aplicada com efetividade reduzindo a percepção do mercado de arte como porto seguro para a lavagem de dinheiro no Brasil. Certamente, a implementação da Portaria será de fundamental importância para que as autoridades de law enforcement possam atuar nesse mercado, facilitando assim as investigações criminais nesse ambiente, tão carente de informações e registros.