Postulados de aplicação do regime de regularização cambial
Ao chegar ao término do Programa intitulado “Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT)”, no próximo 31 de outubro, é momento para destacar que somente a aplicação correta das suas condições autorizará a eficácia de anistia, com extinção da punibilidade dos crimes que alcança, nos termos dos artigo 4º, 5º e 6º da Lei 13.254/2016, sob pena de exclusão do programa, na forma do artigo 9º, com cobrança dos valores dos tributos, multas e juros incidentes, sem prejuízo da aplicação das penalidades cíveis, penais e administrativas cabíveis.
Sobre a questão penal, oportuno enfatizar que o crime de “sonegação” (usemos aqui este termo apenas para simplificar) só existe com a presença de “lançamento tributário”. É o teor da súmula vinculante 24 do STF. Se não houve lançamento, como ocorre com os casos posteriores ao prazo da decadência (artigo 173, I do CTN), não há que se falar em crime de sonegação e, consequentemente, tampouco no de “lavagem de dinheiro”. Contudo, isso não afasta o crime de “evasão de divisas” e outros correlatos. Daí a importância da regularização. A prescrição penal da “evasão de divisas” (12 anos), por ser crime permanente, renova-se a cada 31/12, ano a ano, segundo o momento da respectiva “descoberta” do ilícito.
Para o pagamento do tributo, como condição para o benefício da anistia penal, só interessa a “foto” do patrimônio em 1/1/2011 (toda a disponibilidade econômica no exterior, para autorizar cobrança do imposto sobre a renda, independentemente da data de aquisição ou de remessa dos bens ou valores), seguida dos acréscimos patrimoniais havidos nos exercícios 2012, 2013 e 2014, inclusive, sem abatimento de qualquer parcela consumida no período. Quanto a 2015 e 2016, as declarações serão retificadas, a partir de 31.12.2014 (artigo 6º da Lei).
Em nenhuma hipótese é recomendável deixar de pagar o custo de Regularização sobre os bens anteriores acumulados até 1/1/2011, apenas justificado pela decadência tributária, pois não haverá anistia para a “evasão de divisas”, relativamente ao patrimônio total identificado nesta data (independente do momento de aquisição). O imposto aplica-se a título de ganho de capital, para a declaração dos recursos com eficácia de anistia de todo o passado.
Ao mais, é absolutamente temerário que algum contribuinte optante do RERCT queira pagar o tributo e posteriormente pleitear a restituição do montante pago, a fundar-se em supostas (e inexistentes) inconstitucionalidades. Por uma, que não existem; e, por duas, que o afastamento do tributo fará cessar uma das condições para a anistia penal. Dificilmente o Ministério Público ficará inerte, ao tempo que o contribuinte declara seus ativos no exterior e não cumpre as condições.
Para maior clareza, vamos recordar quatro postulados de aplicação do RERCT.
O primeiro postulado básico do RERCT é reconhecer sua voluntariedade e a cumulação das obrigações impostas como condições inafastáveis.
O RERCT é um programa de declaração voluntária de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados com omissão a dados essenciais, remetidos ou mantidos no exterior. E, ao mesmo tempo, quem adere aceita suas condições, com espontaneidade. Assim consta do § 2º do artigo 1º da Lei.
Logo, para os que pretendam pedir de volta o que for pago, alerta máximo para o quanto prescrevem os artigo 5º e 6º da Lei:
“Art. 5º A adesão ao programa dar-se-á mediante entrega da declaração dos recursos, bens e direitos sujeitos à regularização prevista no caput do artigo 4º e pagamento integral do impostoprevisto no artigo 6º e da multa prevista no artigo 8º desta lei.
§ 1º O cumprimento das condições previstas no caput antes de decisão criminal, em relação aos bens a serem regularizados, extinguirá a punibilidade dos crimes previstos: (…)”.
“Art. 6º (…) § 7º O imposto pago na forma deste artigo será considerado como tributação definitiva e não permitirá a restituição de valores anteriormente pagos.”
“§ 8º A opção pelo RERCT e o pagamento do imposto na forma do caputimportam confissão irrevogável e irretratável dos débitos em nome do sujeito passivo na condição de contribuinte ou responsável,configuram confissão extrajudicial nos termos dos artigos 348, 353 e 354 da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), econdicionam o sujeito passivo à aceitação plena e irretratável de todas as condições estabelecidas nesta Lei.”
O segundo postulado fundamental a ser observado é que não se cria tributo novo com o RERCT, na medida que se trata de aplicação do Imposto sobre a Renda.
O artigo 4º, § 8º, I da Lei, objetivamente, destaca que o valor dos ativos a serem declarados deve corresponder aos valores de mercado, presumindo-se como tal, para os ativos de contas correntes, “o saldo existente em 31 de dezembro de 2014, conforme documento disponibilizado pela instituição financeira custodiante”. A isto, no “Perguntas e Respostas”, a Receita Federal deu entendimento de “saldo” como fluxo do período sujeito à cobrança do IRPF ou IRPJ, aplicado o prazo de decadência do artigo 173, I do CTN. E o fez corretamente.
Conforme o artigo 43, do CTN, na tributação da renda, o que se tributa é aaquisição de disponibilidade, sem qualquer autorização para abatimento de gastos, e independente da “localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção”. A leitura do artigo não deixa dúvidas, a saber:
“Art. 43. O imposto (…) tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
§ 1º A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção.”
O que faz a Lei 13.254/2016 é unicamente estabelecer “as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto”. Tudo conforme o § 2º do artigo 43 do CTN, senão vejamos:
“§ 2º Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo.”
Portanto, tem-se que apurar o saldo dos valores existentes em 1º de janeiro de 2011 e, a este, somar-se tudo o que for depositado até 31 de dezembro de 2014 (momento da disponibilidade), independentemente do montante gasto neste período, da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção.
Em manifesta coerência, para retificação das declarações de IRPF ou de IRPJ, prescreve ainda o artigo 6º da Lei 13.254/2016 que o montante dos ativos objeto de regularização será considerado “acréscimo patrimonial” adquirido em 31 de dezembro de 2014, na forma do inciso II do caput e do § 1º do artigo 43 do CTN, “sujeitando-se a pessoa, física ou jurídica, ao pagamento do imposto de renda sobre ele, a título de ganho de capital”. Como a lei poderia ser mais clara e “interpretativa” do que isso, quanto à natureza do tributo aplicado?
O terceiro postulado aplicativo do RERCT afirma-se pela inexigibilidade, para sua criação, de qualquer lei complementar, na medida que o CTN já rege integralmente o imposto sobre a renda.
É evidente que descabe falar na exigência de “lei complementar” para veicular o RERCT, porque o tributo aplicável é o bom e velho IRPF ou IRPJ, que já existe e em tudo observa o texto do artigo 43 do CTN, que tem o “status” de lei complementar.
E o quarto postulado evidencia a exclusão do contribuinte do polo ativo de qualquer discussão federativa, a pretexto de beneficiar-se de suposta inconstitucionalidade quanto à distribuição federativa do resultado da arrecadação.
Quanto à distribuição do produto arrecadado, definitivamente não persiste qualquer inconstitucionalidade do imposto sobre a renda que incida no RERCT. O disposto nos artigo 157 a 159 da CF somente autoriza legitimidade postulatória das pessoas jurídicas de direito público interno, quanto às parcelas inerentes às transferências constitucionais. No que tange à multa, diga-se o mesmo, porquanto tenha caráter estritamente administrativo, na medida que se presta a substituir patrimonialmente a sanção penal aplicável aos crimes anistiados, em cumulação com o referido imposto.
Resta acentuar que desde a entrada em vigor da chamada “repatriação” de ativos lícitos não declarados no exterior, introduzida pela Lei 13.254, de 13 de janeiro de 2016, a partir do PL 2.960/2015, apareceram muitas sugestões de mudanças.
Justamente para manter imune a liberdade acadêmica de posições jurídicas sobre a matéria, decidi não atuar em qualquer caso de regularização no período de vigência da Lei 13.254/2016, na medida que participei da sua elaboração.
Não sou contra mudanças. Ocorre que o processo legislativo terminou e, agora, no apagar das luzes, só amplia a sensação de insegurança jurídica o continuar de demandas por mais prazo ou por alterações. Afasta quem queira regularizar seus ativos e cria a sensação de que o RERCT será como o REFIS, sempre virá outro na sequência. Vale relembrar que os demais países integrar-se-ão, a partir de 0101.2017 à troca automática de informações e todos estes, juntamente com as instituições financeiras, estarão engajados no cumprimento dos tratados do FATCA e da OCDE, ora em vigor.
A finalidade desse tipo de Programa (offshore voluntary disclosure), nos mais de 50 países que o adotaram, é servir como ponte de transição das “estruturas offshore” e de “sigilo bancário absoluto” para o modelo de transparência e troca de informações internacionais automáticas. (URINOV, Vokhidjon. Tax Amnesties as a Transitional Bridge to Automatic Exchange of Information. Buletin for Internacional Taxation, v. 69. N. 03. Amsterdam: IBFD, 2015). Tem como propósito eliminar o mercado de “facilidades” oferecido pelos paraísos fiscais e estruturas “offshore” ao redor do mundo. Com isso, para os bancos e países, aqueles que não aderirem passam a ter contra si uma presunção de recursos com fontes de origem ilícita.
Prepondera na Lei do RERCT sua vocação de lei temporária com efeitos penais, ainda que dela decorra arrecadação de tributos e multas. Seu objeto fundamental consiste na atribuição do efeito da “anistia” aos crimes cometidos aos detentores de ativos comprovadamente lícitos, mas não declarados e mantidos no exterior. Todavia, o que a lei exige para sua imputação de efeitos reside na aplicação da lei tributária. Daí a importância de correto preenchimento da Declaração (DERCAT), segundo as orientações do “Perguntas e Respostas” da Receita Federal, aprovado pelo Ato Declaratório Interpretativo 5/2016 e posteriores, na condição de “norma complementar” da legislação tributária (artigo 100 do CTN). Defeso, pois, a qualquer autoridade, desbordar das condições entabuladas nesta legislação, na medida que a declaração somente opera efeitos nos seus estritos limites.
Por fim, não se pode deixar de considerar que a voluntariedade das declarações já permitiu a volta de mais de R$ 60 bilhões até o momento. Dinheiro que regressa para cumprir a função social da propriedade dos ativos lícitos na nossa economia. Registre-se, porém, a enorme dificuldade de repatriação, mesmo nos casos de recursos de origem ilícita. Dos aproximadamente “US$ 590,2 bilhões de ativos de brasileiros no exterior, estima-se que US$ 401,6 bilhões são provenientes de saídas ilícitas. Até o momento, porém, os valores recuperados são de US$ 14,9 milhões, de 2005 a 2014. Em 2015, subiu para US$ 124,9 milhões (US$ 94,6 milhões são da “lava jato”; US$ 19,4 milhões — operação anaconda; US$ 10,5 milhões — Banco Santos). Em 2016 (até abril), houve a recuperação de mais US$ 54 milhões (operação “lava jato”). Tudo somando, não chegam sequer a U$ 1 bilhão. Com a troca de informações fiscais, de certo, estes números tendem a aumentar substancialmente, mas dificilmente serão abarcados todos os recursos de origem lícita mantidos em complexas estruturas “offshore”. O RERCT limita-se exclusivamente aos recursos de origem lícita, espontaneamente declarados, como rendas de trabalhadores que atuaram no exterior, de planejamentos tributários agressivos ou mesmo de remessas ao exterior para evitar planos econômicos ou de instabilidades políticas geradas pelo próprio Estado brasileiro. Uma justiça de transição, portanto. Após o término do RERCT, de outra banda, tanto os bancos como os países de situação destes patrimônios não declarados terão contra seus detentores a presunção de origem ilícita, cabendo às autoridades brasileiras o dever de atuar sobre todos aqueles cujas informações sejam alcançadas, em virtude da “evasão de divisas”, “lavagem de dinheiro” e outros delitos que a simples manutenção no exterior autoriza imputar aos seus titulares.