Inconstitucionalização do réquiem para o Orçamento da Seguridade Social
Paradoxalmente, quanto mais caminhamos para a absoluta irrelevância prática do Orçamento da Seguridade Social, como instituto autônomo de tutela do custeio dos direitos fundamentais à saúde, à previdência e à assistência sociais, mais se avizinham as fronteiras extremadas de inconstitucionalidade desse cortejo fúnebre.
A cantilena do mal-estar fiscal da seguridade social apenas dá notícia acerca da frustração dos objetivos[1] que lhe sustentam, como o são, por exemplo, a universalidade de cobertura e atendimento, a uniformidade e a equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais, assim como a irredutibilidade do valor dos benefícios, dentre outros. Mas o ruído que fica ao fundo não é apenas o do seu réquiem, senão também o da cínica desconsideração para com a falta de equidade na forma de participação do seu custeio.
Nada justifica tratar o aventado déficit[2] do sistema solidário que congrega previdência, assistência e saúde pública, de forma dissociada dos severos impasses causados, por exemplo, pela oitava[3] prorrogação da desvinculação de receitas da União – DRU, por meio da Emenda 93/2016; bem como pelo expressivo volume de renúncias fiscais incidentes sobre contribuições sociais e pelo elevado estoque de dívida ativa e de sonegação que afeta o equilíbrio fiscal do destacado Orçamento da Seguridade Social.
Incentivar fortemente a previdência complementar privada a título de reformar a previdência pública, reduzir o Sistema Único de Saúde a um modelo subsidiário em face de planos de saúde populares (um “Obamacare brasileiro” ou “Brazilcare”[4]?) e limitar drasticamente o alcance dos benefícios de prestação continuada são estratégias que indicam a rota de esvaziamento da Seguridade Social por inteiro, e não só das suas despesas.
Não há como sustentar a “morte” da Seguridade Social como um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade destinadas a assegurar os [aludidos] direitos”, sem concomitantemente dar por igualmente fulminada a fonte de receitas próprias que lhe sustenta.
Essa é uma questão de integridade lógica do sistema, na medida em que, se as despesas deixarem de se justificar autonomamente, também as receitas próprias da seguridade deixarão de encontrar guarida no ordenamento como espécie distinta do regime ordinário e universal dos impostos. Simples assim: ou é contribuição social na forma dos artigos 149 e 195, ou é lesão ao pacto federativo (cujo regime de repartição está definido nos artigos 157 a 159) e afronta à vedação de afetação das receitas de que trata o artigo 167, IV, todos da Constituição.
A pergunta que fica, por dever de honestidade e coerência, é a seguinte: qual é o sentido da base tributária a que se refere o artigo 195 da Constituição de 1988, se não ela guardar correlação finalística com os artigos 165, parágrafo 5º, III e 194, ambos também da nossa carta cívica?
A verdade é que as contribuições sociais só existem se ainda se destinarem nominalmente à seguridade social, a despeito de a desvinculação de receitas seguir perenizada ao longo de oito emendas constitucionais desde 1994, conquanto as despesas primárias tenham sido congeladas por 20 anos no bojo da Emenda 95/2016 (no que se inclui a mera correção monetária do piso constitucional em ações e serviços públicos de saúde) e mesmo que venha a PEC 287/2016 a ser aprovada.
Mas eis que surge uma segunda nova questão de fundo a compor o quadro de ruídos por trás do réquiem ora entoado para o Orçamento da Seguridade Social: até quando será falseada e cinicamente assim?
Há de haver algum limite e, ao nosso sentir, está em curso um insustentável e paulatinamente agravado quadro de inconstitucionalização[5] ou inconstitucionalidade progressiva[6] da tredestinação das contribuições sociais do artigo 195 da Constituição de 1988, para outros fins que não apenas a Seguridade Social.
A menos que as correspondentes fontes próprias de receita também sejam elididas, o Orçamento da Seguridade Social não pode simplesmente ser dado por moribundo para fins de mitigação e contenção dos deveres de gasto em saúde, previdência e assistência sociais.
Quer o Executivo federal que a iniciativa privada seja ostensivamente fomentada em tais setores, a pretexto de focalização das políticas sociais apenas nos mais pobres, assim como quer que a participação governamental seja proporcionalmente menor, que a União reduza equitativamente sua arrecadação com contribuições sociais, cuja existência só se justifica à luz da sua destinação à seguridade social.
Ainda que o Supremo Tribunal Federal, por enquanto, negue leitura integrada[7] sobre os efeitos da desvinculação de receitas da União sobre as contribuições sociais, ainda que o alegado déficit da previdência seja tratado de forma estanque em relação ao conjunto da Seguridade Social (mormente quando comparado com as renúncias de receitas, com o elevado nível de sonegação no setor e com a própria DRU), ainda que haja tergiversações de toda sorte quanto ao subfinanciamento do SUS e do Suas, esse é, sem dúvida, um dos nossos maiores defuntos insepultos da nossa realidade.
A pretexto de ajuste fiscal longevo (perene desde 1994?) e nada transitório, tampouco excepcional, o Orçamento da Seguridade Social tem sido objetivamente mitigado, donde são reduzidas as disponibilidades orçamentário-financeiras que capacitam o Estado a garantir direitos sociais.
Parece-nos que o conflito distributivo[8] presentemente vivenciado entre as políticas sociais e a política econômica implantada desde 1994 — tal como definira o Ipea (2004) — é um retrocesso social vedado constitucionalmente e decorre, dentre outras hipóteses, das obscuras regras de desvinculação de receitas e de congelamento de despesas primárias (mais recentemente instituído pela EC 95), as quais foram inseridas nas disposições transitórias da CR/1988 a título de conferir discricionariedade alocativa na execução orçamentária da União.
Nesse suceder excessivo de emendas ao ADCT da CR/1988 promovido tanto para desvincular receitas da União quanto para desonerá-la do dever de progressividade na realização dos gastos sociais, o risco efetivamente é de que a “inconstitucionabilidade” — a que se referiu Bonavides[9] — e a “economicização” do programa constitucional de governo (noção defendida por Canotilho[10]) marquem a financeirização do orçamento público por sua submissão à política monetária, tornando todas as demais políticas públicas como “políticas de segunda classe”.
Decerto, na Constituição de 1988, não há qualquer fundamento normativo para essa hierarquização orçamentária (verdadeira inversão do nosso dirigismo constitucional[11]), pelo contrário, existe a demanda para que o legislador infraconstitucional aponte limites ao avanço da dívida pública (artigos 48, XIV e 52, VI) e para que o poder público não se descuide de agir sempre conforme o devido processo legal, noção essa que não se restringe à garantia formal de contraditório e ampla defesa, mas que impõe materialmente o respeito aos direitos fundamentais.
Diante das exceções referidas pelo artigo 167, IV à regra geral de ser vedado vincular receitas e diante do artigo 149 da CR/1988 — que atrela a existência de contribuições sociais às finalidades taxativamente previstas na correspondente lei instituidora —, questionável é a constitucionalidade desse cortejo fúnebre que visa ao enterro fático do Orçamento da Seguridade Social, por meio da asfixia fiscal das despesas que lhe concernem e da tredestinação das receitas a ele afetadas.
A alegada limitação de recursos e disponibilidades materiais — sob pena de afronta ao artigo 60, parágrafo 4º, IV da CR/1988 — não pode decorrer da ação do legislador ordinário nem do constituinte derivado, se efetivamente o constituinte originário resguardou fonte de receitas para a seguridade social (artigo 195).
Mais cedo ou mais tarde, nós nos depararemos com essa incontornável verdade: ou o réquiem para a Seguridade Social é inconstitucional, ou quem terá morrido será o nosso pacto civilizatório de 1988.
[1] Na forma do artigo 194, parágrafo único da Constituição de 1988.
[2] A esse respeito, vale a leitura da tese de doutorado de Denise Lobato Gentil, denominada “A política fiscal e a falsa crise da seguridade social brasileira – análise financeira do período 1990-2005”, defendida em 2005 no âmbito do Instituto de Economia da UFRJ e disponível em http://www.ie.ufrj.br/images/pesquisa/publicacoes/teses/2006/a_politica_fiscal_e_a_falsa_crise_da_seguraridade_social_brasileira_analise_financeira_do_periodo_1990_2005.pdf.
[3] Como já tratamos em https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/120/Seis%20vezes%20DRU_Pinto.pdf?sequence=1 e http://www.conjur.com.br/2016-set-27/adct-retrato-dorian-gray-constituicao-1988.
[4] Em provocante artigo, Isabela Soares Santos bem nos alerta que “a solução para o SUS não é um Brazilcare”, como podemos ler em https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/1191.
[5] Como depreendemos de várias formas e perspectivas de se relativizar os efeitos da nulidade ex tunc oriundos da declaração de inconstitucionalidade, fazendo-os alcançar tão somente o futuro, na forma dos precedentes emanados pelo Supremo Tribunal Federal no RE 147.776, min. rel. Sepúlveda Pertence, Diário da Justiça, 19/6/1998, na ADI 1.232, rel. p/ acórdão min. Nelson Jobim, DJU 1º/6/2001, na Rcl 4.374, rel. min. Gilmar Mendes, DJe 3/9/2013 e no RE 580.963, rel. p/ acórdão min. Gilmar Mendes, DJe 13/11/2013.
[6] Nos moldes do precedente do Supremo Tribunal Federal sobre a efetiva implantação da Defensoria Pública tratado no RE 135.328/SP e abaixo ementado:
“LEGITIMIDADE – AÇÃO “EX DELICTO” – MINISTÉRIO PÚBLICO – DEFENSORIA PÚBLICA – ARTIGO 68 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – CARTA DA REPÚBLICA DE 1988. A teor do disposto no artigo 134 da Constituição Federal, cabe à Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a orientação e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV, da Carta, estando restrita a atuação do Ministério Público, no campo dos interesses sociais e individuais, àqueles indisponíveis (parte final do artigo 127 da Constituição Federal). INCONSTITUCIONALIDADE PROGRESSIVA – VIABILIZAÇÃO DO EXERCÍCIO DE DIREITO ASSEGURADO CONSTITUCIONALMENTE – ASSISTÊNCIA JURÍDICA E JUDICIÁRIA DOS NECESSITADOS – SUBSISTÊNCIA TEMPORÁRIA DA LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ao Estado, no que assegurado constitucionalmente certo direito, cumpre viabilizar o respectivo exercício. Enquanto não criada por lei, organizada – e, portanto, preenchidos os cargos próprios, na unidade da Federação – a Defensoria Pública, permanece em vigor o artigo 68 do Código de Processo Penal, estando o Ministério Público legitimado para a ação de ressarcimento nele prevista. Irrelevância de a assistência vir sendo prestada por órgão da Procuradoria Geral do Estado, em face de não lhe competir, constitucionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar, contratando diretamente profissional da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento”.
[7] Como indica o precedente do RE 566.007, onde também se discutia o Tema 277 de Repercussão Geral na nossa corte auprema, cuja ementa é a seguinte:
“DIREITOS CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DESVINCULAÇÃO DE RECEITAS DA UNIÃO – DRU. ART. 76 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS. AUSÊNCIA DE CORRELAÇÃO ENTRE A ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DA DRU E O DIREITO À DESONERAÇÃO TRIBUTÁRIA PROPORCIONAL À DESVINCULAÇÃO. ILEGITIMIDADE PROCESSUAL. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.
1. A questão nuclear deste recurso extraordinário não é se o art. 76 do ADCT ofenderia norma permanente da Constituição da República, mas se, eventual inconstitucionalidade, conduziria a ter a Recorrente direito à desoneração proporcional à desvinculação das contribuições sociais recolhidas.
2. Não é possível concluir que, eventual inconstitucionalidade da desvinculação parcial da receita das contribuições sociais, teria como consequência a devolução ao contribuinte do montante correspondente ao percentual desvinculado, pois a tributação não seria inconstitucional ou ilegal, única hipótese autorizadora da repetição do indébito tributário ou o reconhecimento de inexistência de relação jurídico-tributária.
3. Não tem legitimidade para a causa o contribuinte que pleiteia judicialmente a restituição ou o não recolhimento proporcional à desvinculação das receitas de contribuições sociais instituída pelo art. 76 do ADCT, tanto em sua forma originária quanto na forma das alterações promovidas pelas Emendas Constitucionais n. 27/2000, 42/2003, 56/2007, 59/2009 e 68/2011. Ausente direito líquido e certo para a impetração de mandados de segurança.
4. Negado provimento ao recurso extraordinário”.
[8] O aludido conflito foi assim descrito pelo Boletim nº 8 de Políticas Sociais do IPEA: “No Brasil, os direitos sociais e culturais estão em segundo plano, e o Estado não os garante plenamente. As questões sociais, como a violência, a fome, a miséria, o desemprego, a escola e os serviços de saúde de qualidade, cedem lugar às prioridades do ajuste fiscal. […] Mesmo na presença da melhor das intenções e dos diagnósticos mais precisos, os esforços de reforma apresentam-se como o trabalho de Sísifo diante da ausência de recursos e das prioridades das políticas econômicas” (BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Políticas Sociais: acompanhamento e análise. n. 8, Brasília: IPEA, 2004, p. 67. Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/politicas_sociais/bps_08.pdf).
[9] Segundo Bonavides, “poder-se-á chegar, assim, à inconstitucionabilidade toda vez que no ordenamento formalmente constitucional, ou que se pretende seja formalizado em bases constitucionais, se perde por inteiro o senso de proporção entre os fins programáticos, cujo exagero faz a sua concretização extremamente penosa, senão impossível, e os elementos de eficácia e juridicidade das regras constitucionais propriamente ditas. O desequilíbrio então promovido determina a inexequibilidade da Constituição.
Caso haja também acumulação de contradições insolúveis no sistema constitucional, a ponto de quebrantar-se o axioma da unidade da Constituição, o caminho estará aberto ao ingresso da crise de inconstitucionabilidade. Nesse caso, o espírito que sustenta a funcionalidade e juridicidade dos valores, regras e princípios da Lei Suprema tende a perecer” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 389, grifo nosso).
[10] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. 539p.
[11] Para cujo aprofundamento, recomendamos fortemente a leitura de BERCOVICI, Gilberto; MASSONETTO, Luís F. A Constituição Dirigente Invertida: a Blindagem da Constituição Financeira e a Agonia da Constituição Econômica. Revista de Direito Público, v. 45, p. 79-89, 2004. Disponível em https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/24845/1/BoletimXLIX_Artigo2.pdf?ln=pt-pt.