O descompasso entre lei e sociedade nos crimes contra a dignidade sexual
Recentemente, a notícia de uma jovem de 16 anos vítima de estupro coletivo numa comunidade localizada no Estado do Rio de Janeiro trouxe à tona a necessidade de se discutir sobre a, hoje, famosa “cultura do estupro”.
Lembro da minha surpresa ao ouvir a seguinte frase de um professor de Direito Penal ao lecionar sobre os crimes contra a liberdade sexual: “aí a menina ‘tá’ lá, de sainha, o cara chega, vê aquilo e a estupra”.
O nome já diz: “cultura do estupro”. Trata-se, portanto, de um problema cultural, presente em todos os níveis sociais, que, diga-se, por muito tempo foi chancelado pelo Estado.
O Código Penal brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940), até o ano de 2005, listava, em seu artigo 107, como causas extintivas da punibilidade, respectivamente, em seus incisos VII e VIII, o “casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes”, a saber os crimes contra a liberdade sexual, como o estupro, o, à época, crime de sedução, a corrupção de menores e o, também à época, crime de rapto, bem como o “casamento da vítima com terceiro”, nos crimes anteriormente referidos, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeresse o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 dias a contar da celebração do casamento.
Equivale a dizer que, aproximadamente há 11 anos, tempo historicamente recente, em caso de crime de estupro, por exemplo, se o agressor casasse com a vítima, este não mais poderia ser punido pelo Estado. Por conta disso, muitas vítimas eram obrigadas por sua família a se casarem com seus agressores, pois isso as livraria da desonra e lhes concederia a reparação do mal que lhes causaram tais agressores[1]. Os agressores, por óbvio, tinham interesse no matrimônio, pois este os liberava das sanções penais.
Assim, somente em 2005, com o advento da Lei 11.106/05, os referidos incisos do artigo 107 do Código Penal foram revogados[2]. Esta lei trouxe outra importante alteração no que concerne ao tratamento penal dos crimes contra a liberdade sexual: deu nova redação aos tipos penais previstos nos artigos 215 — posse sexual mediante fraude — e 216[3] — atentado ao pudor mediante fraude -, extinguindo a expressão “mulher honesta” (que, nas palavras de Nelson Hungria, seria a mulher que “ainda não rompeu com ominimum de decência exigido pelos bons costumes”[4]).
Nos exemplos aqui elencados, vê-se que a discussão acerca dos crimes sexuais estava atrelada a discussões morais, aos costumes da sociedade da época, mais especificamente, ao comportamento que essa sociedade esperava da dita “mulher honesta”.
É evidente, contudo, que caminhou bem o legislador ao extinguir o termo “mulher honesta” do Código Penal. Primeiro, porque se tratava de elemento normativo do tipo de difícil definição (quem é a mulher honesta?). Segundo, porque não era em nada razoável que a experiência sexual da mulher fosse elemento para se aferir se poderia ela ou não ser vítima dos referidos delitos.
Neste sentido, Guilherme de Souza Nucci, afirmava que “(…) se a razão da existência do tipo penal do artigo 215 é proteger a vítima que, fraudulentamente, entrega-se a uma pessoa, crendo estar mantendo relação com outra (…), o correto seria proteger qualquer pessoa – e não somente e mulher honesta”[5].
Em 2009 entrou em vigor a Lei 12.015, responsável por alterar a denominação dos delitos previstos no Título VI, Parte Especial, da legislação penal brasileira de “crimes contra os costumes” para “crimes contra a dignidade sexual”, numa clara tentativa de afastar a discussão moral que permeia tais crimes da jurídica.
Apesar desta lei já estar em vigor há quase sete anos, o que se verifica é que permanece o esforço de culpar a vítima, mulher, que não se enquadra na descrição de “honesta”, quando se está diante de uma situação atentatória à dignidade sexual.
Embora o crime de estupro, previsto nos artigos 213 e 217 (em caso de vulnerabilidade da vítima) do Código Penal, jamais tenha exigido em seu tipo penal que a mulher fosse honesta para que se configurasse o delito, tal exigência sempre foi e é até hoje feita pela população.
Nota-se, portanto, que, hoje, pelo menos legalmente, não se transfere mais a culpa pelo estupro à mulher. A lei evoluiu. Resta, contudo, a sociedade acompanhar a evolução legal.
1 MIRABETE, Júlio Fabrini. Código Penal interpretado – São Paulo: Atlas, 1999. p. 567.
2 A Lei n.º 11.106/05 também foi a responsável por abolir os crimes de sedução e rapto, antes, respectivamente, previstos nos arts. 217 e 219 a 222 do Código Penal.
3 Redação do art. 215 do Código Penal antes de 2005: “ter conjunção carnal com mulher honesta mediante fraude”. Redação do art. 215 do Código Penal depois da Lei n.º 11.106/05: “ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude”. Redação do art. 216 do Código Penal antes de 2005: “induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Redação do art. 216 do Código Penal depois da Lei n.º 11.106/05: “induzir alguém, mediante fraude, a praticar ou submeter-se à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal”.
4 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. VIII. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954. p. 139.
5 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 588