É preciso aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor (parte 2)
No dia 8 de junho, foi publicado, nesta coluna, artigo de autoria de Clarissa Costa de Lima e Rosangela Cavallazzi enfatizando a necessidade de aprovação do projeto de lei que aperfeiçoa a disciplina do crédito ao consumidor e dispõe sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento do consumidor no Brasil. As autoras lembraram que o projeto em tramitação (PLS 283/2012 no Senado Federal e PL 3515/2015 na Câmara dos Deputados[1]) foi elaborado por uma comissão de juristas, presidida pelo ministro Herman Benjamin, com o objetivo de regular o fruto mais perverso da economia de crédito e da cultura do consumismo que é o superendividamento.
Aqui, pretende-se enfatizar a premente necessidade de aprovação do texto legislativo, mas sob uma perspectiva diferente daquela apresentada pelas autoras do mencionado artigo. O que se pretende enaltecer aqui é a importância de um regramento legislativo para a atividade judicante, que venha a oferecer uma base segura para as decisões que envolvam problemas relativos à crise de solvência dos consumidores, notadamente a possibilidade de revisão judicial dos contratos com base na alegação de superendividamento do devedor.
O evidente caráter distributivo do crédito para consumo faz com que as decisões sobre a possibilidade de revisão dos contratos sob a alegação de superendividamento tenham impacto sobre milhares de contratos, afetando a vida de milhares de consumidores. A ausência de uma regulamentação legislativa torna a situação bastante problemática, pois grande parte das decisões judiciais, principalmente as do STJ, tendem a considerar o crédito e o dinheiro como uma commodity qualquer, ignorando sua relevância social e coletiva, quando, na verdade, trata-se de um bem social.
Não obstante, é sob a ótica de proteção da dignidade da pessoa humana que se deve desenvolver a análise da proteção ao consumidor superendividado, pois, conforme adverte Luiz Edson Fachin, “entre a garantia creditícia e a dignidade pessoal, opta-se por esta que deve propiciar a manutenção dos meios indispensáveis à sobrevivência”[2]. Assim, partindo do regramento constitucional brasileiro, a opção pelo crédito para consumo deve ser protegida pelo direito, prevendo-se mecanismos mais eficientes de fortalecimento do devedor superendividado, tanto na prevenção da situação, incluindo a formação de vontade do consumidor de crédito, quanto na recuperação do devedor que já se encontra em estado de superendividamento.
Os atuais mecanismos previstos na legislação brasileira, principalmente no que concerne ao contrato de crédito, são insuficientes para dar cabo dessa tarefa. Primeiramente, é importante registrar que a questão diz respeito tanto aos contratos de consumo como aos contratos paritários, regulados pelo Código Civil. Isso porque o devedor superendividado encontra dificuldades de pagamento de débitos não só de fornecedores em contratos de consumo, mas também de particulares com quem firmou outros contratos, como locação ou prestação de serviços, por exemplo.
Além disso, o indivíduo em situação de superendividamento tem dificuldades de adimplir contratos firmados com o poder público na prestação de serviços públicos como fornecimento de água ou energia. Ou seja, há uma dificuldade global no cumprimento de todo e qualquer contrato, de modo que, se o devedor for obrigado a cumprir todos os contratos, todos os credores, e não só os envolvidos em relações de consumo, terão dificuldades para a recuperação de seus créditos.
Do ponto de vista da legislação vigente, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, V, inscreve a revisão dos contratos como direito básico do consumidor, quando os contratos estabelecerem prestações desproporcionais ou quando fatos supervenientes ocasionarem a onerosidade excessiva dessas prestações. De igual modo, o Código Civil estabelece a possibilidade de revisão ou resolução dos contratos por onerosidade excessiva para uma das partes, com extrema vantagem para a outra parte, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, nos moldes de seus artigos 317 e 478/479. Tanto nas relações de consumo como nas relações paritárias, reguladas pelo Código Civil, o requisito para a revisão dos contratos é a quebra do equilíbrio contratual diante da onerosidade excessiva superveniente, com a ruptura do sinalagma genético.
De início, já se anteveem duas dificuldades básicas para a revisão de tais contratos com base na alegação de superendividamento do devedor: (a) o superendividamento pode ocasionar um ônus excessivo para o devedor, mas não necessariamente o faz. Existem situações de superendividamento em que não há desproporção contratual, quer genética, quer superveniente, o que afastaria a possibilidade de revisão dos contratos nos estritos limites das regras acima mencionadas; (b) dos contratos de consumo de crédito, os contratos bancários são os que mais estão sujeitos à chamada conexidade contratual, ou seja, uma pluralidade contratual, formada por contratos distintos, com objeto ou partes diferentes, num ou mais instrumentos contratuais, mas todos reunidos por um nexo funcional ou finalístico comum.
Dessa maneira, a interpretação de uma pluralidade contratual, quer seja de contratos coligados, conexos, em rede ou sistema, deve ser alargada para além dos limites da interpretação dos contratos isoladamente, o que muitas vezes impede a discussão acerca da manutenção ou quebra de um sinalagma contratual.
O debate na doutrina brasileira vai além dos argumentos relativos à possibilidade de revisão dos contratos pelo reconhecimento da quebra do equilíbrio contratual numa situação de superendividamento, oscilando entre sua aceitação irrestrita; a aceitação mediante aplicação analógica da lei de falências ao devedor pessoa física e a impossibilidade de revisão sem legislação específica que estabeleça um mecanismo de tratamento global do superendividamento do devedor pessoa física, não sendo o caso de nos aprofundarmos aqui nos argumentos lançados no debate.
Todavia, essa discussão se dá em relação aos contratos isolados. A revisão dos contratos com base no superendividamento por meio da aplicação da onerosidade excessiva ou da teoria da quebra da base negocial, não oferece tratamento adequado para a questão do superendividamento, notadamente porque não oferece tratamento global às dívidas crônicas do devedor e de sua família e aos efeitos do superendividamento. Clarissa Costa de Lima pontua que, na perspectiva individual das ações revisionais, o juiz somente examina as cláusulas contratuais, “sem se preocupar com o passivo do devedor ou com o restante das dívidas assumidas, pois seu objetivo não é reabilitar financeiramente, mas apenas restaurar o equilíbrio do contrato em exame[3]”.
O que se verifica é que, mesmo com a possibilidade de análise do problema do superendividamento a partir dos mecanismos atualmente existentes no ordenamento jurídico brasileiro, ainda remanesce a necessidade de criação de uma lei mais detalhada no tratamento do tema. A par das ações de políticas do consumidor a serem formuladas pelo poder público, evidencia-se a importância do seu regramento no campo do Direito, como tentativa de corrigir dificuldades dos consumidores principalmente no consumo do crédito.
Luciano Timm lembra que exsurge evidente “a importância de trazer para o campo jurídico a questão econômica e sociológica do superendividamento dos consumidores, para se tentar corrigir essas eventuais e até prováveis situações de dificuldades econômicas e financeiras dos destinatários do marketing pró-consumo e endividamento[4]”.
Quando judicializada a discussão, o devedor normalmente argui a ilegalidade ou a abusividade de cláusulas contratuais, sendo certo que o superendividamento nem sempre tem relação com práticas contratuais iníquas. Ao contrário, o superendividamento tem relação com a incapacidade de pagamento das obrigações contratuais assumidas, que muitas vezes não são nem ilegais nem abusivas. De outra parte, as ações revisionais de contratos, que atualmente sobrecarregam os tribunais, não garantem a presença de todos os credores no polo passivo da demanda, de modo que fica inviabilizada a solução global e estrutural que o superendividamento demanda.
Dessa forma, não se pode abrir mão da regulação estatal do tema. Partindo-se da premissa de que o direito é um discurso prático, ou seja, um discurso que trata da justificação de escolhas feitas em determinadas situações relativas a problemas concretos e que é regulado por regras, no caso das decisões judiciais sobre o tema, a regulamentação dos significados possíveis para a polissemia semântica do que seja o superendividamento se apresenta como condição prévia de possibilidade de comunicação linguística e têm um grande peso para a legitimidade da regularização de conflitos sociais por meio das sentenças judiciais.
Por tudo isso, é muito importante a edição de uma legislação que norteie as soluções para o problema dos devedores superendividados, soluções estas que permitam a um devedor individual a renegociação global de suas dívidas com todos os seus credores. Atualmente, a ausência dessa legislação impede que o superendividamento seja considerado como fundamento para revisão dos contratos.
[1] Em 10/12/2015, a consulta à tramitação do projeto informa que foi distribuído às comissões de Defesa do Consumidor, Finanças e Tributação e Constituição Justiça e Cidadania. Aguarda parecer do relator na Comissão de Defesa do Consumidor, deputado Eli Correa Filho (DEM–SP). Acesso em 10/4/2016. Disponível em <http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposic ao=2052490>
[2] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2ª ed. Renovar. Rio de Janeiro. 2006, p. 173).
[3] LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 135.
[4] TIMM, Luciano Benetti. O superendividamento e o direito do consumidor. Revista âmbito jurídico. Rio Grande do Sul. N. 34. Ano IX, outubro de 2006, p. 42.