Lei sobre Conceito de Publicidade Abusiva para Crianças não deve ser Alterada
Está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 3.515/2015, que trata do superendividamento. Nele foi incluída uma alteração no texto do artigo 37, parágrafo 2º, do CDC, redefinindo o conceito de publicidade abusiva para crianças: “É abusiva, entre outras, a publicidade: (…) que contenha apelo imperativo de consumo à criança, que seja capaz de promover qualquer forma de discriminação ou sentimento de inferioridade entre o público de crianças e adolescentes ou que empregue criança ou adolescente na condição de porta-voz direto da mensagem de consumo”.
Alterar o texto do CDC nessa matéria, agora, é um equívoco. No texto atual, defini-se como publicidade abusiva para crianças aquela que “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”. Trata-se de um conceito jurídico indeterminado, conforme o modelo de legislação que vem sendo adotado no Brasil, especialmente no período pós-constitucional. Essa técnica legislativa consiste em deixar nas mãos do intérprete a concretização do conceito normativo, conforme o caso concreto em análise. O juiz dirá se uma determinada publicidade se aproveita da natural deficiência de julgamento e experiência da criança, portanto, se é ou não abusiva.
Os casos levados a exame do Judiciário nessa matéria durante os 26 anos de vigência do CDC são relativamente poucos e só recentemente começaram a chegar ao Superior Tribunal de Justiça, o que significa que estamos apenas começando a condensar uma jurisprudência nesse tema. Decididamente, não é o momento adequado para mudar a lei, porque teremos que começar tudo outra vez.
O texto proposto, se aprovado, funcionará como uma cláusula explicativa da fórmula aberta em vigor. O resultado será inevitavelmente reducionista. Em outras palavras, toda publicidade que não for apelo imperativo de consumo, que não tiver vocalização expressa da criança ou que não promover discriminação ou inferioridade simplesmente deixará de ser considerada abusiva.
Como todos testemunham todos os dias, há muito tempo a publicidade abandonou os apelos diretos ou as fórmulas proposicionais, dando lugar a mensagens neutras do ponto de vista do verdadeiro ou falso, do faça isso ou aquilo. As mensagens são sutis, influenciando o modo de ser do consumidor, o chamado estilo de vida.
Se essa publicidade é aceitável para os adultos, não se pode dizer o mesmo para as crianças. Criança não pode ser encarada como um consumidor, embora se saiba que também o seja. Criança é um ser humano em desenvolvimento. A sua proteção jurídica não está apenas no Código de Defesa do Consumidor, mas também no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição, que consagra em seu favor o princípio da prioridade absoluta.
Portanto, devemos pensar em primeiro lugar na criança sob a perspectiva do futuro que pretendemos para o Brasil. Infelizmente, vivemos numa sociedade globalmente mercantilizada, dominada pela racionalidade econômica, que substitui valores por números.
Ao contrário do que disse Kant, hoje até a dignidade tem preço. Se quisermos persistir nesse modelo, nada poderá ser mais eficiente do que a iniciação infantil no consumismo. É hora de ouvirmos vozes como a de Lipovestky, que prega a salvação a partir da educação escolar. É por ali que poderemos resgatar a dignidade, desenvolvendo uma consciência crítica que possa desfrutar das benesses do consumo sem se render a ele incondicionalmente.
Todavia, crianças e publicidade existirão sempre. O que fazer então?
Há modelos inspiradores. Em recente encontro acadêmico em Porto Alegre, o professor Thierry Bourgoignie fez uma excelente explanação sobre a legislação da província de Quebec, no Canadá. Simplificadamente, a lei quebequense ficou conhecida por proibir a publicidade para crianças abaixo de 13 anos. Essa é a lei em princípio, mas uma regulamentação detalhada especifica o que é permitido e em que condições.
O interessante é que a lei tem ampla aceitação popular. Se compararmos a lei quebequense com o Estatuto do Conar e com a Resolução 163/2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), vamos encontrar muitos pontos convergentes. É isso mesmo. Em que pesem as discussões sobre o seu vício de origem, a Resolução do Conanda tem pontos de convergência com o Estatuto do Conar. Alguém perguntará: por que então ainda se discute essa matéria?
Por duas razões. A primeira é porque sofremos de uma inflamação ideológica, que afeta a nossa capacidade de discernimento. Somos incapazes de reconhecer virtudes nos nossos antagonistas. Segundo, porque carecemos de um órgão regulador legitimado. Explico melhor esta segunda razão.
Do ponto de vista da concreção de uma cláusula geral ou de um conceito jurídico indeterminado, como esse da publicidade abusiva para crianças, há duas possibilidades: ou se espera que o Judiciário construa uma jurisprudência que permita segurança jurídica balizada pelos casos julgados, ou a regulamentação da lei vem para definir os contornos do conceito legal.
A primeira possibilidade é a que está em andamento via STJ, e que ameaça ser destruída desde logo se for aprovada a emenda em debate na Câmara. A segunda possibilidade, que certamente teria efeitos mais imediatos, é de difícil realização. A autoridade legitimada legalmente a fazê-lo seria a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). Na sua função de órgão central da formulação da Política Nacional das Relações de Consumo, a Senacon poderia conduzir um debate amplo e aberto que levasse a um regulamento com aprovação consensual. O problema é que a Senacon é órgão do Ministério da Justiça, sofrendo as consequências da instabilidade política do país.
Diante disso, o que fazer? Acredito que, por ora, pode-se dizer o que não fazer: não mexer na lei que aí está.