Ainda há mais dúvidas e incertezas sobre a lei de repatriação de recursos
Num dos vértices da Praça dos Três Poderes, nobunker em que o Palácio do Planalto se converteu, cercada por uma claque de militantes ideológicos e aliados de ocasião, a presidente reconhece seus crimes de responsabilidade, minimiza o rombo das contas públicas, faz vista grossa às ameaças de radicalização e urra, puxando coro, contra um golpe imaginário. No centro da praça, um Congresso comandado por dois indiciados, com baixíssima credibilidade, pulverizado em partidos repartidos e ávidos por nacos de poder, mas que pouco ou nada dizem aos seus representados avança no processo deimpeachment. E no derradeiro vértice, um Supremo Tribunal Federal abarrotado, chamado a decidir sobre tudo e todos, grosseira e injustamente acusado de acovardado, tenta imprimir alguma racionalidade jurídica aos eventos, mas nem sempre consegue fazer-se compreender pelo público em geral.
Em paralelo, prossegue a operação “lava jato”, investigação criminal que escancarou para o país o sindicato do crime organizado em que se converteram empresas estatais, seus fornecedores e os partidos políticos, locupletando-se da res publica para financiar um projeto de poder voluntarista e autoritário. A mais recente etapa dessa operação — a carbono 14 — traz à luz o On the waterfront tupiniquim, em que não faltam gangsterse homicidas. Resta saber quem será o Terry Malloy, personagem de Marlon Brando no clássico de Elia Kazan, para denunciar os verdadeiros autores dos crimes cometidos no albor do lulopetismo.
E é nesse ambiente político catatônico, de total e absoluta desconfiança, incerteza e insegurança, que passou a vigorar a Lei 13.254, de 13 de janeiro de 2016, que institui “(…) o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), para declaração voluntária e recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados com omissão ou incorreção em relação aos dados essenciais, remetidos ou mantidos no exterior, ou repatriados por residentes ou domiciliados no país, conforme a legislação cambial ou tributária (…)”.
Muitos eventos têm sido feitos para debater o impronunciável RERCT, com destaque para as palestras de especialistas do Direito Tributário e Penal, proferidas na ABDF, no Rio de Janeiro, no último dia 30 de março, em evento coordenado pelo colega de coluna Gustavo Brigagão, e em evento organizado pelo Migalhas, em São Paulo, no último dia 21 de março, coordenado pelo também colega de coluna Heleno Torres.
Em todos esses eventos e nas conversas com especialistas, pude perceber que ainda há mais dúvidas do que certezas. Compartilho nesta coluna algumas dessas incertezas e preocupações.
Em primeiro lugar, deve-se romper de uma vez por todas com o preconceito, ainda muito arraigado no Brasil, contra a detenção de bens no exterior. No mundo globalizado, em que as fronteiras foram derrubadas, e em que é frequente o exercício de atividades profissionais no exterior, é mais do que natural que as pessoas possam legitimamente dispor de bens ou direitos no exterior. Ainda mais no atual ambiente de crise vivenciado no país. Não é à toa que Na crise, executivos buscam saída “pelo Galeão” foi o título de reportagem publicada no caderno de economia do jornal O Globo desse domingo (3/4), em que se informa ter havido “(…) aumento de 100% no número de brasileiros que passaram a cogitar trabalhar fora do país como principal estratégia para o futuro de suas carreiras”.
Em segundo lugar, não pode se deixar de recordar que, do ponto de vista histórico, não faltaram razões para formação de poupanças, com recursos de origem lícita, mas não declaradas, no exterior. O Brasil, como diversos outros da América Latina, viveu diversos momentos conturbados, de grave instabilidade política. Momentos em que os cidadãos que tinham recursos e acesso a mecanismos de transferência de divisas buscaram proteger seus patrimônios, deixando-os fora do alcance da sanha expropriadora de certos governantes. E se isso foi feito antes de meados dos anos 1990, quando ainda vigiam normas restritivas e retrógradas de controle de câmbio, que sequer admitiam cartões de crédito internacionais, certamente esses cidadãos terão cometido ilícitos cambiais.
Ainda do ponto de vista histórico, mas sob o prisma da história da formação do povo brasileiro, não se pode olvidar que nosso país foi construído em grande parte por imigrantes e que seus descendentes poderão, em certo momento de suas vidas, ter herdado bens no exterior de seus familiares e nunca se preocuparam em regularizar esses ativos. Acresce que muitos arranjos sucessórios no exterior são feitos por meio de trusts, instituto decommon law, que consiste numa cisão do direito de propriedade, reservando a titularidade jurídica para um (trustee) e a econômica para outrem (beneficiário), titularidade econômica essa que poderá ser adquirida apenas após a ocorrência de um evento futuro, certo (por exemplo, morte, maioridade) ou incerto (por exemplo, formatura, casamento).
A Lei 13.254/2016 tem sido bastante festejada na mídia por representar uma última “janela de oportunidade” para os residentes fiscais no Brasil regularizarem suas declarações caso delas não tenham constado recursos, bens ou direitos de origem lícita mantidos no exterior, eis que estamos às vésperas do início de uma troca automática de informações bancárias pelos fiscos à escala mundial. Porém, o verdadeiro motor propulsor da medida é a necessidade arrecadatória do Poder Executivo, que vislumbra nesse exótico imposto uma grande oportunidade de pôr as contas públicas em ordem.
Com efeito, nos termos do artigo 6º da lei “(…) o montante dos ativos objeto de regularização será considerado acréscimo patrimonial adquirido em 31 de dezembro de 2014, ainda que nessa data não exista saldo ou título de propriedade, (…), sujeitando-se a pessoa, física ou jurídica, ao pagamento do imposto de renda sobre ele, a título de ganho de capital, à alíquota de 15%, vigente em 31 de dezembro de 2014”.
Note-se que é condição sine qua non para beneficiar da anistia penal (artigo 5º, parágrafo 1º), da remissão de créditos tributários e da anistia administrativa (artigo 6º, parágrafo 4º), o pagamento do imposto acrescido de uma multa de 100%, ou seja, o “custo” para gozar dos benefícios do RERCT será pagar ao Estado 30% do valor dos bens situados no exterior em 31 de dezembro de 2014.
Ora, conquanto designado na lei de Imposto de Renda sobre ganho de capital — conceito que pressupõe um ganho na alienação de um bem ou direito —, o tributo, na verdade, está a incidir sobre uma ficção de acréscimo patrimonial. Trata-se, inegavelmente, de um imposto novo sobre o patrimônio estático dos contribuintes existente em 31 de dezembro de 2014, de duvidosa constitucionalidade, eis que instituído por lei ordinária.
Acresce que esse novo imposto, em certas situações, terá um potencial altamente confiscatório. Tome-se, por exemplo, o caso de um herdeiro de um imóvel no exterior. Em primeiro lugar, não incide Imposto de Renda sobre heranças. Depois, nos termos da Instrução Normativa 1.627, de 15 de março de 2016, que regulamentou a lei do RERCT, essa pessoa terá que promover uma avaliação a mercado e recolher, a título de imposto e multa, 30% do valor do bem. Caso o contribuinte não disponha de outras fontes de recursos, terá que vender o imóvel para pagar o tributo. Isso não seria um caso de confisco?
Para adesão ao RERCT, “(…) a pessoa física ou jurídica deverá apresentar à Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) e, em cópia para fins de registro, ao Banco Central do Brasil declaração única de regularização específica contendo a descrição pormenorizada dos recursos, bens e direitos de qualquer natureza de que seja titular em 31 de dezembro de 2014 a serem regularizados, com o respectivo valor em real, ou, no caso de inexistência de saldo ou título de propriedade em 31 de dezembro de 2014, a descrição das condutas praticadas pelo declarante que se enquadrem nos crimes previstos no parágrafo 1º do artigo 5º desta lei e dos respectivos bens e recursos que possuiu”.
A lei parece distinguir três situações distintas, que na tela de declaração disponibilizada divulgada pela Receita Federal do Brasil nessa segunda-feira (4/4), são designadas por “vínculo do declarante em relação ao recurso, bem ou direito em 31/12/2014”.
Caso o declarante detenha recursos, bens ou direitos em seu nome em 31 de dezembro de 2014, a adesão ao RERCT se faz pela simples declaração dos referidos ativos, pelo valor em reais em referida data.
Caso, porém, em 31 de dezembro de 2014 os contribuintes já não tenham recursos em seu nome, seja porque foram gastos seja porque foram transferidos para terceiros — “na hipótese de inexistência de saldo dos recursos, ou de titularidade de propriedade de bens ou direitos referidos nocaput em 31 de dezembro de 2014” (artigo 4º, V) —, deverão se auto incriminar, descrevendo as condutas previstas no parágrafo 1º do artigo 5º, tais como evasão de divisas, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, falsidade ideológica, falsificação de documentos públicos e/ou privados, entre outros. Referidas condutas teriam sido praticadas para extinguir ou ocultar os recursos, nesse caso transferindo-os para a “(…) titularidade ou responsabilidade, direta ou indireta, de trust de quaisquer espécies, fundações, sociedades despersonalizadas, fideicomissos, ou dispostos mediante a entrega a pessoa física ou jurídica, personalizada ou não, para guarda, depósito, investimento, posse ou propriedade de que sejam beneficiários efetivos o interessado, seu representante ou pessoa por ele designada”.
No entanto, a pergunta que fica — além da crítica à obrigação de se autoincriminar, contrária à garantia constitucional do nemo tenetur se detegere — é a de saber qual a extensão e abrangência dos bens e direitos declaráveis. Em não havendo saldo em 31 de dezembro de 2014, quantos anos retroceder? Quais valores declarar? A Instrução Normativa 1.627/2016 fala em um “valor presumido nessa data, apontado por documento idôneo que retrate o bem ou a operação a ele referente”. Penalistas preocupados com os prazos prescricionais têm orientado declarações mais abrangentes. Será mesmo assim?
Outra observação que deve ser feita respeita ao pouco cuidado no trato com institutos de direito estrangeiro, tais como trusts, fundações, sociedades despersonalizadas, fideicomisso etc. Todos foram “postos no mesmo balaio”, tratados genericamente como arranjos fraudulentos, criados por condutas supostamente criminosas. Ora, não se podem esquecer as prescrições da velha Lei de Introdução ao Código Civil (LICC)[1]: “Artigo 8º. Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados; “Art. 9º. Para qualificar as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. Ou seja, as leis estrangeiras não podem ser menosprezadas para definir a natureza jurídica dos referidos institutos e a que título o contribuinte brasileiro eventualmente fará jus aos recursos, bens ou direitos. Tome-se, por exemplo, um contribuinte beneficiário de um trust. Ao receber os recursos financeiros quando se operar o evento determinado para tanto (por exemplo, morte do instituidor, atingimento da maioridade do beneficiário) os receberá a título gratuito, caso em que o patrimônio recebido seria à partida intributável pelo Imposto de Renda.
Ao fim uma dúvida, de caráter eminentemente tributário, urge ser esclarecida. O contribuinte converterá o saldo dos recursos em moeda estrangeira pela taxa de câmbio em vigor em 31 de dezembro de 2014, qual seja R$ 2,65. Assim, caso um indivíduo tenha uma conta bancária nos Estados Unidos com um saldo de USD 100 mil em 31 de dezembro de 2014, terá, à data fixada para conversão, R$ 265 mil. Em sendo necessário trazer os recursos para o Brasil, fazendo-se ao câmbio de R$ 3,65, por exemplo, o contribuinte terá R$ 365 mil. Pagos os 30% sobre os R$ 265 mil, isto é, R$ 79,5 mil, fica a seguinte dúvida: será ainda devido Imposto de Renda sobre o ganho cambial? Isto é, sobre os R$ 100 mil que o contribuinte “ganhou” na conversão, deverão ser pagos mais 15%, ou seja, mais R$ 15 mil? Essa dúvida se coloca porque a lei não esclarece se os recursos regularizados serão — por ficção — considerados como adquiridos originariamente em moeda estrangeira, caso em que não caberia essa tributação adicional, nos termos do artigo 24, parágrafo 5º da MP 2.158-35/01, ou se serão considerados recursos adquiridos em moeda nacional, caso em que caberia a tributação.
Além dessas, muitas outras dúvidas têm sido suscitadas nos debates, sendo a principal os meios de comprovação da origem dos recursos. Também se discute o caráter taxativo ou exemplificativo do rol dos documentos exigidos no artigo 14 da IN 1.627/2016, como se dará a intervenção de instituição financeira brasileiras para fins de transferência de informações via SWIFT, interpretação das regras proibitivas de adesão, contencioso administrativo em caso de exclusão, entre outras.
Está fora de nosso alcance, nesta coluna, esgotar todas as questões. Porém, parece que a lei lacunosa como está não é consentânea com o princípio da confiança na lei fiscal, imposição do princípio da segurança jurídica que se traduz “praticamente na possibilidade dada ao contribuinte de conhecer e computar seus encargos tributários com base direta e exclusivamente na lei”[2].
Ou seja, muitas dúvidas e incertezas ainda giram em torno desse exótico tributo, alardeado como panaceia para cobrir o déficit orçamentário. O sucesso do RERCT depende de clareza e transparência nas regras do jogo e, fundamentalmente, de segurança quanto ao seu cumprimento, sem surpresas ou artimanhas interpretativas, pois a adesão ao mesmo pressupõeconfiança, “mercadoria” lamentavelmente escassa no Brasil dos dias de hoje.