Incidência da DRE em Regras Constitucionais Estaduais: o caso Fapesp
Por José Mauricio Conti e André Castro Carvalho
Introdução
A recente instituição da Desvinculação de Receitas Estaduais (DRE) pela Emenda Constitucional 93/2016 pode gerar impactos em regras constitucionais estaduais, tal como existe no caso do estado de São Paulo em razão da Fapesp. Este breve texto tem como objetivo levantar alguns argumentos, elencados de forma resumida, que podem ser discutidos em eventual problema prático de colidência do artigo 76-A do ADCT com artigos em Constituições estaduais, tal como o existente na Constituição paulista (artigo 271)[1] no que concerne à Fapesp.
1. Conceito de vinculação, despesa mínima obrigatória e destinação
Os conceitos de vinculação, despesa mínima obrigatória e destinação, embora guardem semelhança no sentido de estabelecer uma garantia constitucional ou legal sob a ótica financeira, são institutos de Direito Financeiro que se diferenciam entre si. Em apertada síntese, vinculação é a criação de um elo jurídico entre uma receita (ou conjunto de receitas) e uma despesa (ou conjunto de despesas) predeterminada. Despesa/gasto mínimo obrigatório é a destinação de uma parcela (ou percentual) de receitas gerais para um gasto predeterminado (em geral, em uma área como saúde e educação). Destinação é a separação de uma parcela (ou percentual) de receitas gerais para um órgão ou entidade, sem qualquer regra constitucional ou legal quanto ao gasto[2].
No caso da Fapesp, é possível depreender que o artigo 271 da CE/SP estabeleceu uma destinação, etapa que funciona de maneira parcial ao que ocorre no processo de instituição de despesa/gasto mínimo obrigatório. Logo, não se trata de uma vinculação ou despesa mínima obrigatória — que é o âmbito de aplicação da regra da DRE. Uma DRE incide de maneira a desvincular parcela do que é estabelecido em uma despesa ou gasto mínimo obrigatório. Portanto, não há que se falar de aplicação da DRE no artigo 271, visto que se trata de regra diferenciada que não representa uma vinculação ou despesa mínima obrigatória.
2. Garantia da autonomia de uma entidade da administração direta
Há também que se observar se o estabelecimento de uma vinculação, despesa mínima ou destinação obrigatória não veicula outro valor constitucional que possa impedir a aplicação a DRE em um caso concreto.
Diferentemente das outras regras constitucionais de vinculação ou gasto mínimo obrigatório, a destinação criada pelo artigo 271 da Constituição estadual serve para garantir a autonomia de uma entidade da administração pública indireta — uma fundação. A doutrina de Direito Administrativo diferencia órgão (que pertence à administração direta) de entidade (que é pertencente à administração indireta). A DRE se aplica a “órgão, fundo ou despesa”, conforme texto do artigo 76-A do ADCT, não atingindo entidades da administração indireta. A DRE não poderia se aplicar a entidade, por isso mesmo que o texto constitucional não utiliza a expressão — pois isso feriria a autonomia das entidades descentralizadas da administração pública.
Para garantir essa autonomia financeira, a CE estabeleceu uma proteção constitucional, a destinação de 1% das receitas estaduais classificadas como tributárias à Fapesp.
Outro ponto conveniente destacar é que a regra do artigo 271 prevê a destinação de receitas tributárias à Fapesp, sendo uma regra mais específica que o artigo 76-A do ADCT, que permite a desvinculação de impostos, taxas e multas — portanto, não somente receitas de natureza tributária. São, portanto, regras autônomas, e uma não atingiria a outra. A regra do artigo 271 da Constituição de São Paulo é mais específica do que a do ADCT (mais amplo), portanto, sob um aspecto de hermenêutica jurídica, prevalece o efeito da norma mais específica que trata das receitas tributárias.
3. Uso das expressões “receita” e “arrecadação”: a regra do artigo 271 ocorre em momento orçamentário anterior à incidência da DRE
O artigo 271 da CE/SP utiliza a expressão “receita”, a qual é repetida nas regras de instituição da DRE e DRM. No entanto, trata-se de uma atecnia legislativa, que não se coaduna com a verdadeira figura e espírito das desvinculações de receitas, que são um fenômeno de execução orçamentária. Isso se depreende da própria origem das DRE e DRM, inspiradas na DRU. No caso da DRU, o artigo 76 utiliza corretamente a expressão arrecadação.
A destinação de receitas do artigo 271 da CE/SP é, portanto, em momento financeiro anterior, já que se destina 1% da receita de impostos, taxas ou multas — independentemente de qualquer regra de execução orçamentária que incida posteriormente, tal como contingenciamento ou desvinculações, que são instrumentos de execução orçamentária. A destinação do artigo 271 não é um instrumento de execução orçamentária, é um instrumento financeiro previsto na Lei 4.320/64[3].
Ou seja, para que haja uma desvinculação, ela é consequência da realização do fenômeno orçamentário da arrecadação. O artigo 271 da CE/SP, no entanto, insculpiu uma regra constitucional de direito substantivo financeiro, destinando o 1% das receitas tributárias antes que qualquer fenômeno orçamentário pudesse atingi-las.
Isso se vislumbra pela própria sistemática do artigo 271 como um todo. Enquanto o caput inscreve que é garantida a destinação de uma dotação orçamentária mínima das receitas tributárias estaduais na ordem de 1% (ou seja, montante estimado da arrecadação), no parágrafo único estabelece a regra de repasses, que é de acordo com a arrecadação efetivamente realizada no mês anterior (mês de referência) e paga no mês subsequente — que pode, inclusive, ser em outro exercício financeiro (principalmente na transição de cada exercício em dezembro/janeiro). Caso contrário, o artigo 271 teria que utilizar a expressão “é destinada o mínimo de um por cento da arrecadação de sua receita tributária”; porém, ao não o fazer, demonstra como a proteção é de ordem financeira e mais robusta que uma proteção de execução orçamentária.
Por fim, não é despiciendo ressaltar que as regras dos artigos 106 e 107 do ADCT não se aplicam a estados e municípios. O novo Regime Fiscal, conforme caput do próprio artigo 106, ocorre somente no “âmbito dos Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União”. Portanto, o reajuste dos repasses à Fapesp não guardam qualquer relação com o estabelecido no novo Regime Fiscal, tendo o estado de São Paulo liberdade na elaboração da peça orçamentária em fixar o montante e utilizar os índices inflacionários que achar necessário.
Conclusão
Embora este texto seja uma análise perfunctória sobre o tema, a ideia foi justamente destacar algumas discussões que podem surgir com a instituição da DRE e DRM e eventual impacto em regras de vinculação, destinações e despesas mínimas obrigatórias já existentes em Constituições estaduais e leis orgânicas.
Não há, portanto, uma vinculação de receitas de acordo com a sua natureza jurídica, conforme analisado anteriormente, mas, sim, uma destinação, uma dotação mínima, na qual os repasses são efetivados de acordo com a arrecadação tributária.
O caso da Fapesp é interessante por permitir explorar uma análise de diversos instrumentos de Direito Financeiro que, a priori, parecem não interferir no âmbito de aplicação da regra do artigo 76-A do ADCT; entretanto, em uma interpretação mais cuidadosa, é possível detectar algumas particularidades que permitem uma discussão mais profunda de conceitos de Direito Financeiro e que merecem ser explorados futuramente em novos textos sobre a DRE.
[1] O artigo 271 da Constituição do estado de São Paulo assim prescreve a regra no caso da Fapesp: “Artigo 271 – O Estado destinará o mínimo de um por cento de sua receita tributária à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, como renda de sua privativa administração, para aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico.
Parágrafo único – A dotação fixada no “caput”, excluída a parcela de transferência aos Municípios, de acordo com o artigo 158, IV, da Constituição Federal, será transferida mensalmente, devendo o percentual ser calculado sobre a arrecadação do mês de referência e ser pago no mês subseqüente”.
[2] Com relação a esses conceitos, ver Vinculação de Receitas Públicas (Quartier Latin, 2010), onde o tema e essa diferenciação foram abordados por um dos coautores (André Castro Carvalho). Posteriormente, na esteira desse trabalho, veja-se Fernando Facury Scaff, Não é obrigado a gastar: vinculações orçamentárias e gastos obrigatórios, publicado em 2016.
[3] Com relação a esses conceitos, conferir a recente obra A Execução do Orçamento Público: Flexibilidade e Orçamento Impositivo, publicada por Gabriel Loretto Lochagin em 2016 (Blucher Editora).