Em matéria penal, primeiro direito do réu é ser bem acusado
Nem todo descumprimento das obrigações tributárias principais ou acessórias constitui sonegação fiscal, crime cuja configuração pressupõe a prática de ações ou omissões fraudulentas tendentes (i) a ocultar do Fisco a existência de tributo devido ou (ii) a iludi-lo relativamente (ii.1) ao seu valor, (ii.2) ao seu vencimento, (ii.3) à pessoa do devedor ou (ii.4) à ocorrência de pagamento ou outra causa extintiva.
Assim, não é crime o simples inadimplemento do tributo, quando todas as obrigações acessórias tenham sido cumpridas (vedação da prisão por dívida), ou quando o descumprimento ou a inexatidão destas decorram de erro do contribuinte ou da divergência deste face à interpretação legal adotada pelo Fisco (inexistência de dolo — Código Penal, artigo 18, parágrafo único), valendo lembrar que, nos tributos sujeitos a lançamento por homologação, o sujeito passivo deve interpretar e aplicar a norma por sua conta e risco, intervindo as autoridades tributárias apenas a posteriori.
Da mesma forma, não é crime deixar de cumprir as obrigações acessórias, se o tributo foi integralmente pago ou se não há tributo a pagar (crime impossível, por absoluta impropriedade do objeto — CP, artigo 17). De fato, a sonegação fiscal é crime material, que pressupõe o resultado, e não formal ou de mera conduta.
Dessa última consideração decorre que, à sua vez, toda sonegação fiscal constitui descumprimento — ao lado das obrigações acessórias — também de uma obrigação tributária principal.
Atento a isso, o STF editou a Súmula Vinculante 24, a saber: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”. E não poderia ser diferente, pois não se pode falar em sonegação antes que o próprio credor esteja convencido de sua pretensão, o que só ocorre após o término do processo tributário administrativo — que é meio de controle interno do ato administrativo de lançamento.
A nosso ver, a Súmula Vinculante 24 é mesmo tímida, pois a denúncia deveria aguardar o trânsito em julgado da ação judicial em que se contesta o débito, visto que só nela haverá plena cognição dos fatos (porque os Tribunais administrativos não admitem perícias) e do direito (porque não apreciam alegações de inconstitucionalidade ou mesmo de ilegalidade de atos normativos). Só assim se afastará o risco de condenação criminal pela evasão de tributo depois reconhecido como indevido.
Em síntese, a admissibilidade da denúncia exige a confirmação administrativa do crédito tributário e, ademais, a sua plena exigibilidade, pois não é ilícito — e muito menos crime — o inadimplemento de obrigação temporariamente inexigível (Código Tributário Nacional, artigo 151).
Aplica-se aqui a ideia de unidade do injusto, segundo a qual um ato não pode ser inválido em um ramo do ordenamento (o penal), se é válido — ou ainda não está definitivamente caracterizado como inválido — em outro (o tributário). Noutras palavras, a tipicidade é dada pelo Direito Penal, mas a antijuridicidade o é pelo ramo que valora a conduta, aqui, o Direito Tributário.
Nos delitos fiscais, as normas efetivamente contrariadas – pois o agente antes realiza do que viola o tipo penal — são as tributárias. Não há distinção ontológica ou qualitativa entre o ilícito penal e o ilícito tributário de índole administrativa. A diferença está no grau de reprovabilidade que lhes atribui o legislador, é dizer, na sanção que comina a cada qual. E mais: como já ficou evidente, a compreensão do ilícito penal depende da compreensão do ilícito tributário, pois sem este não há aquele.
Do exposto decorre que, para atender ao artigo 41 do Código de Processo Penal — segundo o qual “a denúncia (…) conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias…” —, a acusação deve descrever suficientemente a ofensa à legislação tributária e o preenchimento do tipo penal, sob pena de rejeição liminar por inépcia (CPP, artigo 395, inciso I).
No dizer do STF, capitaneado pelo ministro Celso de Mello, são insubsistentes “as imputações que se mostrem indeterminadas, vagas, contraditórias, omissas ou ambíguas” (1ª Turma, HC 70.763/DF, DJ 23/9/1994), bem como as fundamentadas em “simples presunção ou (…) meras suspeitas” (2ª Turma, HC 89.427/BA, DJe 27/3/2008).
Uma denúncia com tais fragilidades — ainda que pretensamente compensadas, como é usual, pela invocação de cifras aterradoras — implica clara inversão do ônus da prova, violando o postulado constitucional da não culpabilidade.
De fato, cabe ao Ministério Público provar, de forma inconteste, a prática do crime e a culpa do acusado, e não a este último demonstrar sua inocência. Como adverte o STF, “já não mais prevalece (…) a regra que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou (…), com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (…)” (2ª Turma, HC 88.875/AM, relator ministro Celso de Mello, DJe 9/3/2012).
Não se trata de menoscabar a importância da adimplência fiscal ou a gravidade do crime de sonegação. Cuida-se, isso sim, de exigir que as denúncias a ele relativas — como, aliás, a qualquer outro delito — se revistam de apuro técnico, indo além dos subjetivismos revestidos de dramaticidade, de forma a proteger o contribuinte de ações penais indevidas, prematuras ou ininteligíveis.
Em suma, o primeiro direito do réu é ser bem acusado.