É possível uma responsabilidade civil sem dano? (II)
Em um de seus contos ficcionais mais conhecidos, The Minority Report, Philip K. Dick fala do desenvolvimento de um programa que permitiria a abolição do sistema criminal como nós o conhecemos, quer dizer, por meio de penas que somente são aplicadas após o cometimento do delito. Por meio de mutantes com capacidade extrassensorial para predizer o futuro, engendra-se essa forma distinta de combate à criminalidade. A repressão a posteriori cede lugar à punições baseadas numa espécie de prevenção ex ante, com a prisão do autor do crime momentos antes de seu eventual cometimento. A responsabilidade civil sem danos chega bem próximo disso. Por sinal, impressiona a coincidência entre a fundamentação dada pelo autor do revolucionário projeto naquela obra e aquelas que são usadas pelos fautores desta. São praticamente as mesmas: a falta de eficácia de um sistema que mais se preocupa em sancionar que evitar [1].
Deixando de lado a ficção científica, as primeiras ideais sobre o tema foram feitas na França pelas professoras Mathilde Boutonnet e de Catherine Thibierge. Aparentemente, o primeiro artigo a falar expressamente da necessidade de revisão das bases estruturais da responsabilidade civil foi o de Catherine Thibierge, professora da Faculdade de Direito de Orléans, na Revue Trimestrielle de Droit Civil, sob o título Libre propos sur l’évolution du droit de la responsabilité vers un élargissement de la fonction de la responsabilité[2]. Tomando por base uma acepção jurídica da palavraresponsabilidade, que se considera voltada para a reparação dos danos causados no passado e, por isso mesmo, bastante restrita, postula seu alargamento por meio de uma revisitação filosófica de seus conceitos e fundamentos. Para isso, se serve do pensamento de influentes pensadores da atualidade como Hans Jonas e Paul Ricoeur.
O trabalho utiliza um recurso literário interessante: fantasia uma diálogo com Cândido, de Voltaire. Em dado momento, ressalta-se que aresponsabilidade civil tem sido voltada apenas para a compensação, ou reparação dos danos. É quando ela recebe uma severa reprimenda da personagem imaginária: “Como se deixa que teu direito utilize o termo ‘responsabilidade’ num sentido tão limitado? Não te desconforta ver assim reduzido um tão belo atributo da condição humana?”[3]. Então, passa-se a propor a divisão que é uma constante nas formulações dos teóricos da responsabilidade sem dano: a cisão da responsabilidade civil em duas: uma preventiva e outra repressiva, ou, como é comum na linguagem dos autores franceses, curativa.
Não há propriamente uma recusa ao modelos tradicional de responsabilidade (curativa) e que concebe sanções retributivas, sejam compensatórias, sejam punitivas, as quais pressupõem, de todo modo, uma efetiva lesão a um bem juridicamente protegido. Nada obstante, ao lado dela, visando fazer frente à gestão dos novos danos (deles tratamos na coluna passada), a professora viria a propor que a responsabilidade civil também fosse um campo aberto à adoção de medidas de antecipação e prevenção aos danos.
Contudo, ao meu sentir, o trabalho mais sistêmico sobre a questão foi o produzido por Cyril Sintez a partir da distinção existente no Direito francês entre danos e prejuízos. O trabalho faz, inicialmente, sutis — mas ao mesmo tempo geniais — distinções vernaculares entre dano, violação factual, prejuízo e consequência jurídica, considerando, porém, que todos esses conceitos estariam sob jungidos pelo regramento da responsabilidade civil. Contudo, como cada qual estaria a necessitar de um adequado enfrentamento pelo Direito, passa a divisar a possibilidade de existirem sanções preventivas a serem adotadas antes mesmo da ocorrência do dano e de consequências materiais[4]. Apoiado nessa premissa, Cyril Sintez, então, constrói a sua tipologia de sanções no âmbito da responsabilidade civil, a saber: a) sanções anteriores ao dano; b) sanções concomitantes ao dano; c) sanções posteriores ao dano. Obviamente, interessam-nos as duas primeiras.
Antes da realização do fato danoso, como evidenciam as situações de ameaça à vida privada, a sanção deve ser dada para antecipar-se à realização mesma do dano, ainda que o risco não seja de todo conhecido considerando-se o chamado estado da arte. Aqui é expressa a referência ao princípio precautório, que outorga o derradeiro fundamento normativo para as conclusões apresentadas por Cyril Sintez. “Assim, antes da realização do fato danoso, as manifestações preventivas da responsabilidade civil se realizam, seja por meio de medidas preventivas de antecipação do risco conhecido, seja por meio de medidas de precaução”[5].
Além disso, no curso da realização do fato danoso também seria possível a existência de sanções sem a existência completa de dano, considerando-se que fato pode produzir turbação com consequências jurídicas mais concretas, sem, contudo, apresentarem características de um fato danoso ressarcível. As sanções, aqui, também se fazem pelos atos materiais e demais providências sub-rogatórias, destinadas à sua cessação. É o caso já conhecido no Direito Civil do uso nocivo da propriedade e sua relação com os demais direitos de vizinhança[6].
A existência de uma ação de responsabilidade civil chega a ser defendida ainda, se bem que de modo menos contundente, por Geneviève Viney e Patrice Jourdain. As prestigiadas autoras ressaltam que, em princípio, a ideia de reparação é que domina o direito da responsabilidade civil. Nada obstante, existiriam certas formas de dano como, por exemplo, as decorrentes do uso nocivo da propriedade, da concorrência desleal, das ameaças aos direitos reais e aos direitos da personalidade, que tornariam insuficientes as “simples” medidas de reparação ao dano[7].
A reparação do dano já não mais constituiria o objeto responsabilidade civil. Ela agora se destinaria também a evitá-lo No entanto, se é verdade que nada não é tão ruim que não possa piorar, houve quem passasse a defender um modelo ainda mais extremado de responsabilidade (sem dano): uma que se basearia na própria conduta, como acontece no Direito Público. Essa reconfiguração ainda mais radical da Responsabilidade Civil e suas desconcertantes proposições, para dizer o mínimo, examinaremos na próxima coluna.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFMG).
[1] “With the aid of our precog mutants, you’ve boldly and successfully abolished the post-crime punitive system of jails and fines. As we all realize, punishment was never much of a deterrent, and could scarcely affordedcomfort to a victim already dead.” (DICK, Philip K. The minority report and other classics stories. New York: Citadel Press Books, 2002, p. 72).
[2] THIBIERGE, Catherine. Libre propos sur l’évolution du droit de la responsabilité vers un élargissement de la fonction de la responsabilité.Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, nº 3, jul./set. 1999.
[3] “Comment se fait-il que ton droit utilise le terme ‘responsabilité’ dans un sens si limité ? Cela ne te gêne pas de voir de voir ainsi réduit un si bel attribut de l’humaine condition?” (Idem, p. 562).
[4] SINTEZ, Cyril. La sanction préventive en droit de la responsabilité civile : contribution à la theorie de l’interprétation et de la meise en effet des normes. Paris: Dalloz, 2011.
[5] No original: “Ainsi, avant la réalisation du fait dommageable, les manifestations préventives de la responsabilité civile se soldent soit en mesures préventives d’anticipation du risque connu soit en mesures de precaution.” (Idem, p. 451).
[6] Idem, p. 451.
[7] VINEY; Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité de droit civil: les effets de la responsabilité. 2. ed. Paris: LGDJ, 2001, p. 18.