Lei antiterrorismo foi aplicada injustificadamente a presos
Ficou conhecida, no Brasil, a prisão dos suspeitos de “planejarem” atos terroristas, completando-se, no dia 24 de julho, a prisão do último suspeito.
Após entrevista coletiva fornecida pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, no dia 21 de julho, na qual comentou as prisões e a operação que as deu origem, as prisões perderam credibilidade e, em sua fala, pôde-se constatar a inaplicabilidade da Lei 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo) ao caso.
Para que se possa analisar essa aplicação dessa Lei e a eventual configuração do crime de “ato preparatório” de terrorismo, toma-se como ponto de análise a seguinte passagem da fala do ministro da Justiça:
“Aparentemente, por tudo o que nós temos até agora, era uma célula absolutamente amadora, sem nenhum preparo […]. É uma célula desorganizada. Por isso que eu insisto e reitero que a questão da segurança pública é muito mais importante do que a questão, gera mais preocupação do que a questão do terrorismo. Agora, obviamente, nós não podemos, nenhum, nenhuma força de segurança séria pode ignorar, mesmo verificando que cada um individualmente e em grupo, seria tudo o que, vamos dizer, levaria a crer que jamais realizaria um ato sério, um ato competente de terrorismo. Mas, o fato de começarem atos preparatórios também, não seria de bom senso aguardar para ver. Então, o melhor seria, como foi, imediatamente decretar a prisão.”[1]
Primeiramente, deve-se considerar que, conforme Enrique Bacigalupo, entende-se ser inapropriado se falar em “punição de atos preparatórios”, pois não há ato preparatório em si, assim como inexiste ato de execução em si. Preparação e execução são conceitos variáveis e dependem do ponto de começo da proteção do bem jurídico fixado no tipo penal.[2] Assim, no crime de “atos preparatórios” de terrorismo (art. 5º da Lei Antiterrorismo3), o próprio “ato preparatório” do crime de terrorismo previsto no artigo 2º da mesma Lei se transforma, por uma opção legislativa, em ato de execução de delito autônomo.
Contudo, não se deve perder de vista a relação entre ambos os tipos penais. Ou seja, para a aplicação do tipo penal de prática de ato preparatório do crime de terrorismo, inevitavelmente se deve estar diante de atos capazes a resultarem no próprio crime de terrorismo. Não fosse assim, sequer se poderia falar de ato preparatório do crime, por impossibilidade de se alcançar o crime na sua modalidade completa.
Nesses termos, se o próprio tipo penal de terrorismo exige, para a sua consumação, que a conduta seja apta de produzir efeitos de ampla gravidade, capaz de difundir um sentimento de terror generalizado, sob pena de se estar diante de um crime impossível (conforme já defendido em obra coletiva com André Luís Callegari, Cláudio Rogério Sousa Lira, Elisangela Melo Reghelin e Manuel Cancio Maliá[4]), também o crime de ato preparatório de terrorismo deve exigir a demonstração de sua potencial gravidade.
Verificando-se a inexpressiva gravidade oferecida pela conduta praticada, não se poderá defender a existência de qualquer ato preparatório de terrorismo, pois se trata de impossibilidade de configuração futura de um crime de terrorismo e, consequentemente, de inexistência de qualquer lesão ou ameaça ao bem jurídico tutelado – inviabilizando-se, portanto, se pensar em configuração do delito tipificado no artigo 5º da Lei Antiterrorismo.
No pano de fundo dessa discussão se encontra o basilar princípio da ultima ratio do Direito Penal, a determinar a sua aplicação apenas a casos extremos — situação que, na fala do ministro da Justiça, torna-se de simples solução, já que fez questão de ressaltar a desorganização dos presos por “ato preparatório de terrorismo” e a inexistência de ameaça significativa de um atentado por parte dos mesmos, impossibilitando uma aplicação justificada da Lei 13.260/2016.
Ao final, o que chama a atenção em relação às prisões realizadas e no tocante ao discurso proferido pelo ministro da Justiça, além da injustificada aplicação da Lei Antiterrorismo, é a caracterização de um Direito Penal voltado à tutela do futuro, mesmo quando a “ameaça futura” for assumidamente insignificante. Desenha-se o que Massimo Donini caracteriza como um Direito Penal pautado em um ideal preventivo, focado não em condutas graves em si mesmas, mas em razão das consequências que poderiam advir dessa conduta.[5]
Ainda, esse modelo de legislação penal (e, principalmente, a forma como foi aplicada essa legislação no caso das prisões realizadas) apresenta fortes características de um “Direito Penal do autor”, não mais voltado ao fato praticado, mas a status do sujeito a ser punido — fenômeno que, na lição de Claus Roxin, é fomentado pela preocupação preventiva de delitos futuros,[6] conforme acima mencionado.
Por fim, parece realmente se estar diante de uma verdadeira manifestação do Direito Penal do inimigo,[7] considerando-se que, em razão de um simples juramento (“batismo”), realizado por meio virtual, ao grupo autodenominado Estado Islâmico, os indivíduos detidos tenham se autoexcluído do “contrato social”, não mais possuindo os direitos básicos de qualquer cidadão, mas, a partir de então, tornando-se destinatários de um tratamento excepcional, digno de inimigos do Estado.
Referências
BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal. Parte general. 2. ed. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 1999.
CALLEGARI, André Luís. et al. O Crime de Terrorismo: reflexões críticas e comentários à Lei de Terrorismo: de acordo com a Lei nº 13.260/2016. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
DONINI, Massimo. El Derecho Penal frente a los desafíos de la modernidad. Perú: ARA Editores, 2010.
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Organização e tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría Del Delito. Traducción y notas Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997.
1 Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/olimpiadas/rio2016/noticia/2016/07/ministro-diz-que-4-de-10-suspeitos-de-ligacao-com-ei-ja-se-conheciam.html.
2 BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal. Parte general. 2. ed. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 1999. p. 462-463.
3 Lei 13.260/2016, Art. 5o Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito:
Pena – a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade.
4 CALLEGARI, André Luís. et al. O crime de terrorismo: reflexões críticas e comentários à Lei de Terrorismo: de acordo com a Lei nº 13.260/2016. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
5 DONINI, Massimo. El Derecho Penal frente a los desafíos de la modernidad. Perú: ARA Editores, 2010. p. 33.
6 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría Del Delito. Traducción y notas Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 177.
7 Proposta defendida por Günther Jakobs e que apregoa a diferenciação entre “cidadãos”, titulares de direitos e inseridos na ordem jurídica padrão e “inimigos”, indivíduos que se colocam à margem do contrato social por não mais oferecerem garantia cognitiva mínima de respeito ao Direito e em relação aos quais o Direito não mais seria aplicável, mas apenas a coação, objetivando-se a inocuização do sujeito. (JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Organização e tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012).