Carvalho e Silva Advogados

Misérias do cárcere e reforma do presídio da Papuda

Por Cezar Roberto Bitencourt

A mídia nacional ocupou-se de uma pequena reforma de um dos pavilhões do Complexo Penitenciário da Papuda, representada apenas por uma simples pintura, com a colocação de sanitário com vaso, pia e uma pequena ampliação de cada cela. Os fiscais do sistema penitenciário, que têm a obrigação de zelar pela segurança, bem-estar, limpeza, higiene e tratamento humanitário dos reeducandos escandalizou-se com a melhora das condições dos locais dessa área. Essa mini-reforma atendeu as exigências mínimas do art. 88 da LEP[1], quais sejam: cela individual, com área mínima de 6m quadrados, contendo dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Ademais, cada cela deverá conter: salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana.

Os estabelecimentos penitenciários, em quase sua totalidade, não satisfazem nenhuma dessas exigências, inclusive o complexo penitenciário da Papuda, em Brasília. Mas essas carências históricas nunca indignaram os fiscais do sistema, pelo menos nada disso nunca veio a público. A violência das prisões, o empilhamento de presos, a falta de vagas, a inexistência de celas individuais, de vasos sanitários, de camas ou colchões, a insuportável insalubridade e desrespeito à dignidade humana são a tônica de todas as prisões brasileiras. Aliás, essas deficiências sistêmicas ganharam repercussão mundial e envergonharam a nação brasileira, a ponto de a Itália negar a extradição de brasileiro em razão das péssimas condições de nosso desumano e indigno sistema penitenciário.

Essa pequena reforma que apenas procurou atender aquelas exigências mínimas da Lei 7.210/84, que é dever do Estado, indignou de tal forma o Ministério Público da Capital brasileira, que a chamou, inacreditavelmente, de “surreal”! O ineditismo reside no aspecto de, ante omissão absoluta do Estado, um particular realizou as reformas absolutamente necessárias.

Conhecemos a temática penitenciária — academicamente e profissionalmente: fizemos doutorado nessa área[2] e tivemos oportunidade, nos idos da década de 1980, de trabalhar como promotor de Justiça na Vara de Execuções de Penais de Porto Alegre. De lá para cá o sistema penitenciário nacional só piorou, e muito, tanto que o Presídio Central de Porto Alegre transformou-se em um novo Carandiru, que envergonha a todos os gaúchos.

A revolta do Ministério Público, segundo se alega, deve-se ao fato de dita reforma não ter sido levada a efeito pelo Poder Público, órgão permanentemente omisso, sob o conhecido argumento de falta de recursos orçamentários. Um empresário recolhido ao sistema teria bancado dita reforma. Abriu-se caça às bruxas, exigindo-se punição de funcionários que possam ter liberado a melhora da imundície que é o sistema penitenciário local.

Talvez tenha mesmo havido alguma irregularidade administrativa, mas para o bem, ou na moderna linguagem penal da República de Curitiba, se houve “foi de boa-fé”!

Ao contrário disso, seria interessante que se adotasse duas medidas: uma premiando aos funcionários que permitiram a melhora do caos local, e, outra, colocando um empresário da mesma magnitude em cada bloco do Complexo da Papuda para, quem sabe, se pudesse — adotando medida semelhante — humanizar um mínimo dessa vergonhosa casa penitenciária, ante a impune omissão do Poder Público que nada faz e o complacente olhar do Poder Judiciário e do Ministério Público, que não a interditam pela insalubridade, indignidade e por não atender aos requisitos mínimo exigidos pela Lei de Execução Penal!

Questiona-se a validade da pena de prisão no campo da teoria, dos princípios, dos fins ideais ou abstratos da privação de liberdade, e se tem deixado de lado, em um plano muito inferior, o aspecto principal da pena privativa de liberdade, que é a sua execução. Igualmente se tem debatido no campo da interpretação das diretrizes legais, do dever-ser, da teoria, e, no entanto, não se tem dado a atenção devida ao tema que efetivamente merece: o momento final e dramático, que é o do cumprimento da pena institucional. Na verdade, a questão da privação de liberdade deve ser abordada em função da pena tal e como hoje se cumpre e se executa, com os estabelecimentos penitenciários que temos, com a infraestrutura e dotação orçamentária de que dispomos, nas circunstâncias e na sociedade atuais, quais seja, indignas, insalubres, desumanas, contagiosas e condenadas pelos organismos internacionais dos direitos humanos.

Definitivamente, deve-se mergulhar na realidade atual, qual seja, na desumanidade dos presídios brasileiros, enfrentar o caos do nosso sistema penitenciário. Nessas prisões o mínimo que se perde é liberdade, pois ao adentrar no sistema prisional já se perde a identidade e vira-se um número qualquer, perde-se, simultaneamente, dignidade e a honra, sendo submetido a humilhação, a maus tratos, à miséria, a violência sexual, as doenças infecto- contagiosas! Isso tudo é apenas a síntese do que representa o ingresso de alguém no sistema penitenciário nacional.

Essas “misérias do cárcere”, para usar a linguagem de Carnelutti, são do conhecimento das autoridades brasileiras, inclusive do Supremo Tribunal Federal, sem implementarem qualquer iniciativa em busca de melhoras, pois para determinadas autoridades quanto pior, melhor. Ignoram que o detento não é preso para ser punido, que a condenação é a própria punição, e que o indivíduo é preso para ser recuperado, isto é, ressocializado, segundo a falaciosa dicção da lei brasileira.

Reiteradamente se tem dito que o problema da prisão é a própria prisão. Segundo Heleno Fragoso, “a prisão representa um trágico equívoco histórico, constituindo a expressão mais característica do vigente sistema de justiça criminal. Validamente só é possível pleitear que ela seja reservada exclusivamente para os casos em que não há, no momento, outra solução”[3].

Aqui, como em outros países, a prisão corrompe, avilta, desmoraliza, denigre e embrutece a pessoa do condenado. Michel Foucault, extraordinário pensador francês, em sua magnífica obra Vigiar e punir, denunciava o que seja o drama da prisão, e perguntava se a pena privativa de liberdade fracassou. Ele mesmo respondia, afirmando que ela não fracassou, pois cumpriu o objetivo a que se propunha, qual seja, o de estigmatizar, de segregar e separar os condenados. No entanto, em outra passagem, o mesmo autor sentenciava: “A prisão é a detestável solução da qual, no momento, não se pode abrir mão”. Nessa mesma linha, a Exposição de Motivos do Projeto de Código Penal alemão destacava que “a prisão é apenas uma amarga necessidade de uma sociedade de seres imperfeitos, como são os homens”!

A prisão é uma fábrica de delinquente, sendo impossível alguém nela entrar e de lá sair melhor do que entrou! Até para sobreviver nesse meio altamente criminógeno o indivíduo é obrigado a optar de imediato por uma facção criminosa, que é o vestibular para o crime. Não há alternativa: opta ou morre! E aqui fora, nossos ingênuos legisladores qualificam, majoram ou criminalizam a simples conduta formal de integrar facção criminosa, como se fosse possível voluntariamente permanecer fora dela. Logicamente, nesses casos, configura-se com clareza meridiana a figura da coação irresistível.

A sociedade brasileira é coautora quando manda para a prisão alguém que dela não precisa, assim, exemplificativamente, quando lhe cabe pena alternativa (é um direito do cidadão), mas erroneamente o sistema judicial — que nos representa — não substitui determinada pena e impõe o recolhimento ao sistema prisional. Nesses casos, ou seja, nas hipóteses de penas substituíveis, nós sociedade estamos oportunizando a um simples batedor de carteira, por exemplo, aperfeiçoar-se na arte do crime, assegurando-lhe a frequência à universidade do crime, onde fará todo seu aprendizado acadêmico e prático, e ,se ficar mais tempo poderá chegar a pós-graduar-se em criminalidade.

Essa é a realidade penitenciária brasileira, capaz de transformar aquele simples batedor de carteira em um grande e perigoso marginal, altamente qualificado, pós-graduado pela universidade do crime, cujo crédito educativo foi financiado por nós brasileiros, ainda que através de nossos representantes legais. Sabe-se, hoje, que a prisão reforça os valores negativos do condenado. O réu tem um código de valores distinto daquele da sociedade. Daí a advertência de Claus Roxin de “não ser exagero dizer que a pena privativa de liberdade de curta duração, em vez de prevenir delitos, promove-os”[4].

Depois nós sociedade fechamos todas as portas para o egresso do sistema penitenciário, isto é, para aquele que sobreviver, e de lá sair com vida, não tem o apoio de ninguém, principalmente do Estado que o condenou e lhe prometeu ressocializá-lo no interior das prisões, ignorando que é impossível ressocializar alguém para a liberdade em condições de não liberdade. Ademais, além de transformar um simples batedor de carteira em um criminoso refinado, não lhe assegura o reingresso na sociedade, não dá a menor atenção ao egresso do sistema penitenciário, o qual, sem outra alternativa, provavelmente, voltará a delinquir.

Dessa forma, o Estado não apenas falha duplamente com o egresso do sistema penitenciário, mas também com a própria coletividade, por que, mais uma vez, falha na segurança que deve à sociedade, desde que foi avocado o monopólio do ius puniendi.

Por tudo isso, não se pode esquecer que a pena de prisão deve ser a ultima ratio, ou seja, deve ser reservada somente para as penas maiores ou para os autores de crimes mais graves, para os indivíduos mais perigosos, aqueles cuja vida em liberdade torna muito difícil nossa própria vida em sociedade. Trata-se, na verdade, não de abolicionismo penal, mas de se reconhecer que a prisão não é a melhor solução, devendo ser reservada para aquelas hipóteses em que ela se mostre absolutamente necessária.

As primeiras manifestações contrárias às penas privativas de liberdade, pelo menos as de curta duração, surgiram com o Programa de Marburgo de Von Liszt, em 1882, e a sua “ideia de fim no Direito Penal”, quando sustentou que “a pena justa é a pena necessária”. O combate à pena de prisão, sugerindo a busca de alternativas (inicialmente com a pena de multa), ganhou espaços nos Congressos Penitenciários Europeus realizados nessa década (1880 a 1890), ou seja, ainda no Século XIX. Essas “ideias progressistas” expandiram-se pelo continente europeu, já no início do século XX. Como tivemos oportunidade de registrar[5], uma das primeiras penas alternativas surgiu na Rússia, em 1926, a prestação de serviços à comunidade; em 1948, a Inglaterra introduziu a prisão de fim de semana; em 1953, a Alemanha adotou a mesma pena para infratores menores; em 1963, a Bélgica criou o arresto de fim de semana; e, finalmente, em 1972, a Inglaterra instituiu a pena de prestação de serviços comunitários, que, até hoje, é a mais bem-sucedida alternativa à pena de prisão.

Essa progressista orientação político-criminal, da primeira metade do século XX, no entanto, não estimulou o legislador penal brasileiro de 1940. Tanto que nosso Código Penal não previu nenhuma alternativa à pena de prisão, a despeito da importância desse movimento político-criminal que contagiou toda a Europa Democrática. A justificativa para a opção político-criminal repressora, do legislador brasileiro, deve-se ao fato de que o nosso Código Penal de 1940 inspirou-se no Código Penal Rocco de 1930 (italiano), de caráter nitidamente fascista.

Pois bem, atendendo aos anseios da penologia e da política criminal vigentes, a Reforma Penal de 1984 (Lei 7.209/84) adotou medidas alternativas para as penas de prisão de curta duração: instituiu as chamadas penas restritivas de direitos e, revitalizando a tão aviltada, desgastada e ineficaz pena de multa, restabeleceu o sistema de dias-multa[6] no Brasil.

É indispensável que se encontrem novas penas compatíveis com os novos tempos, mas tão aptas a exercer suas funções quanto as antigas, que, se na época não foram injustas, hoje, indiscutivelmente, o são.

Para concluir, voltando ao tema inicial, e enfatizando a situação degradante das casas penitenciárias brasileiras, as quais além não atenderem a exigência mínima da Lei 7.210/84, como já demonstramos, violam garantias básicas da constituição Federal que, ademais, proíbe também a aplicação depenas cruéis e degradantes. O ideal é que todas as prisões atendessem as exigências mínimas do já referido artigo 88 da LEP, aliás, nesse sentido, parece que o Complexo da Papuda é o que mais se aproxima das necessidades estabelecidas no referido diploma legal. Mesmo assim, é recomendável que o poder público determine, com urgência, que se crie as mesmas condições de salubridade, aeração, higiene e estrutura nos demais blocos do Complexo da Papuda, em vez de gastar suas energias e economias em busca de “culpados” por melhorar a habitabilidade de uma ala dessa casa.

Vale destacar, finalmente, que a digna juíza das Execuções Criminais designou para esse espaço reeducandos que necessitam segurança especial,verbis: “deverão ser alocados na referida Ala presos que não possuam condições de permanecer junto à massa carcerária comum, em virtude da existência de risco concreto à sua integridade física ou à segurança e estabilidade do sistema penitenciário, tendo em vista a natureza ou a repercussão dos crimes que cometeram ou mesmo sua condição pessoal”.  Não se ignora, por outro lado, que, em qualquer prisão há detentos que correm maior risco de serem vítimas dos mais variados crimes, tais como extorsões, assaltos, coações, abusos de qualquer natureza, e, inclusive, serem utilizados em motins e rebeliões etc. A responsabilidade pela segurança é do Estado, por isso, essas medidas de seguranças não representam nenhum privilégio pessoal ou especial, mas medida cautelar fundada em critérios técnicos que levam em consideração exclusivamente razões de segurança para qualquer interno que satisfaça requisitos objetivos e subjetivos preestabelecidos.


[1] Lei. 7.210/84 – Lei de Execução Penal.

[2] O livro decorrente de nossa Tese de Doutorado tem o título de “Falência da pena de prisão”, defendida em 1992, na Universidade de Sevilha.

[3] Fragoso, Heleno Cláudio, Direitos dos presos, Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 15.

[4]. Roxin, Claus, A culpabilidade como critério limitativo da pena, Revista de Direito Penal, 11-12/17, Rio de Janeiro, 1974.

[5] Bitencourt, Cezar Roberto, Falência da pena de prisão: causas e alternativas, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 267.

[6]  Bitencourt, Cezar Roberto, Falência da pena de prisão, cit., p. 247-248.