Carvalho e Silva Advogados

A ordem pública ambiental e a suspensão de liminares nas ações ambientais

Por Álvaro Luiz Valery Mirra

A suspensão de liminares contrárias ao poder público é instituto processual disciplinado em diversas leis esparsas — Lei 7.347/1985 (artigo 12, parágrafo 1º), Lei 8.437/1992 (artigo 4º), Lei 9.494/1997 (artigo 1º) e Lei 12.016/2009 (artigo 15) —, destinado a propiciar a suspensão da eficácia de medidas cautelares e de antecipações de tutela concedidas em mandados de segurança, ações sob procedimento comum, ações civis públicas e ações populares movidas em face do poder público ou seus agentes, em caso de manifesto interesse público, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. De natureza jurídica controvertida, a suspensão de liminares pode ser considerada como contracautela incidental ao processo[1], cujo julgamento é de competência privativa do presidente do tribunal ao qual se atribui o conhecimento do recurso passível de interposição contra a decisão impugnada.

Por intermédio da medida em questão, busca-se a salvaguarda de interesses públicos privilegiados[2] — a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas —, passíveis de serem lesados pela execução da tutela de urgência deferida pela instância inferior em demandas propostas em face do ente público. No âmbito da suspensão de liminares, não se reexamina a decisão proferida, em virtude de error in procedendo ou error in judicando, mas unicamente a existência de risco a valores tidos pela lei como superiores (ordem pública etc.), que, independentemente do acerto ou não do decisumproferido pela instância inferior, devem, no caso, ser prestigiados[3].

Registre-se, no ponto, que a suspensão de liminares é medida excepcional[4], já que implica a sumária retirada da eficácia de decisão judicial por autoridade diversa daquela incumbida do reexame da matéria pela via recursal própria e adequada prevista em lei, unicamente em vista da tutela do interesse público[5].

Questão interessante na matéria diz respeito à possibilidade de enquadramento da proteção do meio ambiente no conceito de ordem pública passível de tutela pela via da suspensão de liminares. Vale dizer: pode-se falar em uma ordem pública ambiental a ser preservada pela via do instituto processual em questão?

Em termos gerais, a ordem pública está relacionada aos valores mais importantes para a sociedade, necessários à promoção e à manutenção da organização e da harmonia sociais e do bem-estar de todos[6]. Noção variável no tempo, tem se expandido consideravelmente, desde a sua concepção tradicional, que a restringia à tranquilidade, à segurança e à salubridade públicas, para abarcar valores outros que passaram a ser reconhecidos com a marca da sua prevalência na sociedade[7]. Significa a ordem pública, pura e simplesmente, a ausência de perturbações ou desordens[8] ou, em um sentido mais amplo, a ordenação harmoniosa da vida social a cargo do Estado[9]. Por seu intermédio, limita-se o exercício de direitos e liberdades, não só a fim de evitar ou fazer cessar condutas contrárias à ordem, como também para assegurar o próprio exercício pleno dos direitos e das liberdades, em busca da obtenção do equilíbrio necessário à tranquilidade social[10].

Considerada a relevância da proteção do meio ambiente para o funcionamento da sociedade humana e para a vida e a qualidade de vida dos serem humanos presentes e futuros, reconhecida, inclusive, constitucionalmente (artigo 225 da CF), não é difícil de integrar a dimensão ambiental ou ecológica na noção de ordem pública, como forma de promover a organização e a harmonia sociais e o bem-estar de todos[11]. A ordem pública ambiental, nesses termos, deve ser compreendida como a ausência de perturbações ou degradações ambientais[12] ou, se se preferir, como o estado de equilíbrio harmônico entre o homem e o seu ambiente, a ser assegurado pelo Estado[13].

Por meio da ordem pública ambiental ou ecológica limitam-se direitos e liberdades fundamentais, a fim de garantir a realização do direito, igualmente fundamental, de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado[14], consagrado na Constituição. Ademais, a necessidade de preservação da ordem pública ambiental ou ecológica pode ir até o ponto de impor coativamente — mesmo pela via judicial — à autoridade incumbida do exercício do poder de polícia ambiental o dever de agir no sentido de controlar e fiscalizar as atividades degradadoras do meio ambiente[15], tarefa irrenunciável do poder público para evitar a ocorrência de lesões à qualidade ambiental[16].

Nesses termos, admitida a existência de uma ordem pública ambiental pelo ordenamento jurídico brasileiro, não há como afastar a sua consideração e a sua tutela na utilização do instituto da suspensão de liminares concedidas em face dos entes públicos.

Interessante mencionar, aqui, que a jurisprudência dos tribunais superiores parece, de fato, caminhar nessa direção, já que, segundo se tem entendido, a ordem pública protegida no âmbito da suspensão de liminares pelos presidentes dos tribunais não se limita mais à ordem administrativa ou aos “altos interesses administrativos”, expressos na normal execução do serviço, no regular andamento das obras e no devido exercício das funções da administração[17], passando a abarcar, por igual, a proteção do meio ambiente como valor autônomo[18].

Portanto, admite-se, hoje, no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, a existência de uma dimensão ambiental ou ecológica na noção atual de ordem pública, com a consagração no ordenamento jurídico nacional de uma ordem pública ambiental a ser preservada, suscetível de autorizar a proteção da qualidade ambiental como valor em si mesmo meritório de especial tutela, pela via do instituto da suspensão de liminares. Dito de outra maneira, as nossas mais altas cortes de Justiça têm reconhecido que a proteção do meio ambiente configura interesse público privilegiado, de tal sorte que a degradação ambiental pode implicar, e no mais das vezes implica realmente, grave lesão à ordem pública, em sua vertente ecológica ou ambiental, suscetível de justificar a tutela por intermédio da medida judicial excepcional em questão.

Disso tudo resulta que a necessidade de tutela da qualidade ambiental pode levar, em muitas circunstâncias, à suspensão, pelo presidente do tribunal, da eficácia de liminares — cautelares ou antecipatórias — concedidas pelas instâncias inferiores em benefício de interesses privados, a fim de assegurar o exercício do poder de polícia ambiental pela autoridade administrativa, com base, notadamente, nos princípios da prevenção e da precaução, assumindo a proteção do meio ambiente posição preponderante, frente ao risco de grave lesão à ordem pública, em sua dimensão ambiental[19].

E não é só. Admitido que a ordem pública a ser salvaguardada pelo instituto processual da suspensão de liminares é, igualmente, a ordem pública ambiental, torna-se possível, ainda, a prevalência da proteção do meio ambiente nas hipóteses de decisões proferidas em ações civis públicas ambientais ajuizadas em face do poder público por algum dos legitimados ativos discriminados no artigo 5º da Lei 7.347/1985 (Ministério Público, Defensoria Pública, associações civis).

Nesses casos, pleiteada a suspensão da execução de liminar favorável ao meio ambiente, concedida em ação civil pública, sob o fundamento do risco de grave lesão à ordem público-administrativa e/ou à economia pública, como normalmente se dá na prática, a necessidade de preservação da ordem pública ambiental, também protegida pelo instituto, levará o presidente do tribunal, obrigatoriamente, no mínimo, à realização da ponderação de interesses públicos privilegiados[20] — ordem pública ambiental versus ordem público-administrativa ou economia pública —, com ampla possibilidade de preponderância do interesse relacionado à proteção do meio ambiente, notadamente em função da natureza e da frequente irreversibilidade do dano temido à qualidade ambiental. Em tal circunstância, evidenciado o risco de grave lesão inverso, pelo atentado potencial à ordem pública ambiental, fica autorizada a manutenção da eficácia da decisão proferida em favor do meio ambiente, relegada a discussão aprofundada da matéria, quanto ao acerto ou desacerto dodecisum, para o âmbito do recurso próprio cabível, sujeito a exame pelo órgão recursal competente[21].


[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Suspensão do mandado de segurança pelo presidente do tribunal. In: DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, tomo I, p. 613-614. Ainda: STF – Tribunal Pleno – AgRg na SS/DF n. 846 – j. 29.05.1996 – rel. min. Sepúlveda Pertence.
[2] STF – Tribunal Pleno – AgRg na SS n. 1149/PE – j. 03.04.1997 – rel. min. Sepúlveda Pertence.
[3] STJ – Corte Especial – AgRg na SS n. 1642/CE – j. 07.02.2007 – rel. min. Barros Monteiro; STJ – Corte Especial – AgRg na SLS n. 1071/SC – j. 18.08.2010 – rel. min. Cesar Asfor Rocha; STJ – Corte Especial – AgRg na SLS n. 1753/MG – j. 07.08.2013 – rel. min. Felix Fischer. Em doutrina: DINAMARCO, Cândido Rangel, op. cit., p. 62; ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 209; RODRIGUES, Marcelo Abelha. A suspensão de segurança. In: SUNDFELD, Carlos Ari; BUENO, Cássio Scarpinella. Direito processual público: a Fazenda Pública em Juízo. São Paulo: SBDP / Malheiros, 2003, p. 152; BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual: direito processual coletivo e direito processual público. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 2, tomo III, p. 71; VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 48.
[4] STF – Sessão Plenária – AgRg na SS n. 4.242/RJ – j. 18.05.2011 – rel. min. Cezar Peluso.
[5] VENTURI, Elton, op. cit., p. 28; ZAVASCKI, Teori Albino, op. cit., p. 210-211. Parte-se, aqui, da orientação ainda prevalente nos tribunais a respeito da constitucionalidade do instituto da suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público, o que é contestado por parcela expressiva da doutrina. Ver, a propósito, VENTURI, Elton; ROTHENBURG, Walter Claudius. O controle de constitucionalidade das decisões de suspensão de provimentos judiciais contrários ao Poder Público (RePro, n. 256, junho/2016, p. 257-291), em que os autores analisam a inconstitucionalidade do instituto, com ampla referência à doutrina.
[6] BELAIDI, Nadia. Droits de l’homme, environnement et ordre public: la garantie du bien être. In: BOUTELET, Marguerite; FRITZ, Jean-Claude (coord.). L’ordre public écologique: towards an ecological public order. Bruxelles: Bruylant, 2005, p. 58; VINCENT-LEGOUX, Marie-Caroline. L’ordre public écologique en droit interne. In: BOUTELET, Marguerite; FRITZ, Jean-Claude (coord.). L’ordre public écologique: towards an ecological public order, cit, p. 82-83.
[7] PRIEUR, Michel. Droit de l’environnement. 2ª ed. Paris: Dalloz, 1991, p. 57; BELAIDI, Nadia, op. cit., p.76; VINCENT-LEGOUX, Marie-Caroline, op. cit., p. 82.
[8] CABALLERO, Francis, Essai sur la notion juridique de nuisance. Paris: LGDJ, 1981, p. 20.
[9] VINCENT-LEGOUX, Marie-Caroline, op. cit., p. 82; CARLIN, Volnei Ivo.Direito administrative: doutrina, jurisprudência e Direito Comparado. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2001, p. 145.
[10] BELAIDI, Nadia, op. cit., p. 58, 77-78; VINCENT-LEGOUX, Marie-Caroline, op. cit., p. 82-85.
[11] No Brasil, fazem alusão a uma ordem pública ambiental, a ser preservada pelo exercício do poder de polícia ambiental, DINO, Flávio e DINO NETO, Nicolao. In: DINO NETO, Nicolao; BELO FILHO, Ney; DINO, Flávio. Crimes e infrações administrativas ambientais. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 397. No sentido de uma ordem pública ambiental constitucionalizada, BENJAMIN, Antônio Herman V. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito ambiental constitucional brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 100; MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 263.
[12] CABALLERO, Francis, op. cit., p. 20 e 35.
[13] PRIEUR, Michel, op. cit., p. 57-58.
[14] VINCENT-LEGOUX, Marie-Caroline, op. cit., p. 91 e 104.
[15] VINCENT-LEGOUX, Marie-Caroline, op. cit., p. 95-96.
[16] STJ – 2ª T. – REsp n. 1.071.741/SP – j. 24.03.2009 – rel. min. Herman Benjamin; STJ – 1ª T. – AgRg no REsp n. 1.001.780/PR – j. 27.09.2011 – rel. min. Teori Zavascki.
[17] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção “habeas data”. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 58.
[18] STF – Sessão Plenária – AgRg na SS n. 209/SP – j. 16.03.1988 – rel. min. Rafael Mayer, com voto vencedor nesse mesmo sentido do min. Moreira Alves; STF – Sessão Plenária – AgRg na STA n. 118-6/RJ – j. 12.12.2007 – rel. min. Ellen Gracie.
[19] STJ – Corte Especial – AgRg na SS n. 1642/CE – j. 07.02.2007 – rel. min. Barros Monteiro; STJ – Corte Especial – AgRg na SLS n. 1.419/DF – j. 01.08.2013 – rel. min. Ari Pargendler; rel. p/ acórdão min. João Otávio de Noronha.
[20] RODRIGUES, Marcelo Abelha, op. cit., p. 164-165; VENTURI, Elton, op. cit., p. 278-279.
[21] STJ – Corte Especial – AgRg na SLS n. 1648/SP – j. 03.10.2012 – rel. min. Felix Fischer; STJ – Corte Especial – AgRg na SLS n. 1071/SC – j. 18.08.2010 – rel. min. Cesar Asfor Rocha; STJ – Corte Especial – AgRg na SLS n. 1753/MG – j. 07.08.2013 – rel. min. Felix Fischer; TJSP – Órgão Especial – AgRg n. 2113499-40.2014.8.26.0000/50000 – j. 03.09.2014 – rel. des. Renato Nalini.