Responsabilidade penal de empresas motiva debates dentro e fora do Brasil
Enquanto se divulgava, no Brasil, o oferecimento de uma longa denúncia contra pessoas jurídicas e físicas suspeitas da prática de crimes contra a vida, contra a integridade física e contra o meio ambiente causados pelo rompimento de uma barragem, acidente catalogado dentre os maiores desastres ambientais do Brasil, realizava-se do outro lado do Atlântico, em Heidelberg, Alemanha, um encontro de dia e meio sobre o direito penal da empresa, no qual se dedicou todo um dia ao tema da responsabilidade da empresa por infrações (penais).[1] Dos dois lados do Atlântico, falava-se sobre o mesmo tema e a coincidência me serve, então, de pretexto para compartilhar alguns pontos do evento que foram objeto de viva discussão.
Dois grandes temas foram destaque no encontro: a responsabilidade penal e administrativa das pessoas jurídicas e, por influxo dos fatos revelados pelo “Panama Papers” e da 4ª Diretiva Europeia relativa à prevenção da lavagem de capitais (Diretiva EU 2015/849),[2] a amplitude da incriminação da lavagem de capitais.
Sobre o primeiro tema, Neumann ponderou que a incapacidade de conduta e de culpabilidade, no sentido penal destes termos, das pessoas jurídicas não parece ser um obstáculo intransponível à implementação de uma responsabilidade penal. Necessário seria, porém, encontrar um conteúdo próprio para a culpabilidade da pessoa jurídica, uma vez que o modelo de imputação mediante o qual se imputa a culpabilidade da pessoa física à pessoa jurídica, por implicar em responsabilidade por ato de outrem, conflitaria com o princípio da culpabilidade, na Alemanha reconhecido como de hierarquia constitucional. O grande problema seria, no entanto, como adaptar o conceito de pena a um “ente sem alma”. A partir de uma perspectiva fundamentalmente sociológica e consequencialista, observou Ortmann, que as organizações são os mais poderosos atores da modernidade, formando sistemas de comportamento, os quais, alocados na interdependência sistêmica e complexidade modernas, provocam uma difusão da responsabilidade. Não havendo um conceito pré-jurídico de pessoas naturais ou jurídicas — razão pela qual, inclusive, a expressão “pessoa jurídica” seria tautológica —, não haveria óbice a que o ordenamento jurídico considerasse também a pessoa jurídica como capaz de responsabilidade penal. As dificuldades, porém, surgiriam nas etapas seguintes de implementação de uma tal responsabilidade, sendo questionável como um conceito de culpabilidade altamente pessoal poderia se ajustar às pessoas jurídicas. Seria possível pensar em uma intencionalidade própria das pessoas jurídicas (empresas) baseada nas suas finalidades econômicas comadas às suas pautas de comportamento, ou tal proceder implicaria em uma violação da proibição de analogia (fins econômicos da empresa como analogia às intenções individuais)?
Sob um outro viés, ligado à coerência da sanção administrativa aplicada às pessoas jurídicas, Christoph Dannecker abordou o tema do “direito de regresso” das pessoas jurídicas contra as pessoas físicas pelos prejuízos e custos (inclusive com investigações internas e defesa) incorridos em virtude das infrações por estas praticadas em seu nome e representação. O dilema que se coloca nessa situação é o seguinte: se se está a sancionar (ainda que administrativamente) a pessoa jurídica, considerando-a capaz de comportamentos ilícitos — ainda que praticados por pessoas físicas que a representam, posto que ela não tem como agir por si, ao menos num sentido naturalístico —, então reconhecer seu direito de regresso contra as pessoas físicas, após as sanções, para pleitear perante estas os custos das sanções, das investigações internas e da defesa implicaria em contradição interna da ordem jurídica, pois implicaria, simultaneamente, em negar já a capacidade de atuar de forma ilícita da pessoa jurídica. Ademais, aceitar o direito de regresso significaria que, se não foi ela quem praticou a infração, trata-se de responsabilidade por ato de outrem, vedada no campo da aplicação de sanções. Em suma: se a pessoa jurídica não é culpada, não pode ser sancionada; se a pessoa jurídica pode ser sancionada, ela não tem direito de regresso contra seus integrantes.
A jurisprudência, porém, ora acolhe, ora recusa o direito de regresso, conforme se extrai de quatro casos: (a) em um deles, o BGH[3] reconheceu que a pessoa jurídica tinha direito de regresso contra um de seus consultores tributários em virtude de uma multa recebida por ato ulteriormente considerado ilícito pelas autoridades tributárias e praticado com base em seu aconselhamento (BGH, decisão de 15/04/2010 – IX ZR 189/09); (b) em outro, o LAG Düsseldorf,[4] em caso envolvendo a empresa Thyssen, entendeu que uma multa recebida pela empresa em função de violação das normas de concorrência, no valor de 103 milhões de euros, não poderia ser ulteriormente cobrada dos integrantes da empresa (decisão de 20/1/2015 – 16 Sa 459/14); (b) em outro, ainda, o LG München I[5] entendeu procedente pleito da Siemens contra ex-membros de sua diretoria para reparação dos custos incorridos com sua defesa (investigação interna e custos de defesa propriamente ditos) nos casos de corrupção, estimados em 15 milhões de euros (decisão de 10/12/2013 – SHK O 1387/10[6]); (d) finalmente, em 2016, o BGH entendeu que uma pessoa jurídica formada por torcedores (torcida organizada) poderia cobrar dos seus integrantes as multas que recebeu em função de infrações por estes praticadas em certo jogo de futebol (decisão de 22/09/2016 – VII ZR 14/16).
A par da insegurança gerada por entendimentos conflitantes, as decisões reconhecendo o direito de regresso violariam a exigência de que a sanção, mesmo a administrativa, tenha por base a prática de um ato próprio culpável (mesmo que da pessoa jurídica). A orientação pode ter um papel fundamental, ainda, no direito de regresso contra compliance officers que falhem no desempenho de suas atividades. Mas, mais grave ainda se anunciaria a insegurança quanto a uma possível acusação pela prática de infidelidade patrimonial (Untreue, § 266 StGB[7]) quando os novos dirigentes da empresa decidirem não cobrar as multas e custos de defesa dos (ex-) administradores que praticaram a infração em seu nome. Isto porque, como a infidelidade patrimonial pode ser praticada por omissão, seria possível que se interpretasse que o não exercício desse direito de crédito pudesse configurar a prática deste crime por parte dos dirigentes. Recomendou-se, assim, uma solução legislativa.
Ainda dentro deste tema, Wimmer e Ruhri abordaram aspectos processuais da responsabilidade sancionadora da pessoa jurídica, tanto sob o ponto de vista da lei de infrações administrativas alemã (Ordnungswidrigkeitengesetz), como da Lei de Responsabilidade de Entes Coletivos por crimes austríaca, a qual, em 2006, introduziu no direito positivo austríaco uma responsabilidade sancionadora da pessoa jurídica conectada à prática de crimes por pessoas individuais, mas aplicada no contexto do processo penal[8] — um sistema bastante parecido com aquele implementado na Itália pelo Decreto Legislativo 231, de 2001. Os conferencistas, muito embora partindo de ordenamentos jurídicos diversos, chegaram à mesma conclusão: há necessidade de intervenção legislativa no direito processual sancionador (penal ou não) para assegurar os direitos das pessoas jurídicas. Sustentou-se, inclusive, que essas adaptações deveriam ser alocadas no código de processo penal e que deveria ser obrigatório que o processamento da pessoa jurídica se fizesse no mesmo processo movido contra a pessoa natural, na linha do que já ocorre na Itália, e, agora, na Áustria.
Um dos problemas centrais neste setor é a ausência de normas que separem o papel das pessoas naturais do papel das pessoas jurídicas. Assim, por exemplo, executam-se buscas e apreensões contra pessoas físicas por crimes econômicos na sede da empresa onde trabalham, sendo que as buscas acabam atingindo bens e dados de propriedade da pessoa jurídica, “não investigada” no processo penal e, portanto, sem oportunidade de se defender ou mesmo de se opor legitimamente às medidas. Tais documentos, não obstante, são ulteriormente utilizados contra a pessoa jurídica para a aplicação de sanções administrativas. O mesmo pode suceder com a interceptação telefônica, seja de linhas móveis da empresa utilizadas por investigados/acusados, seja de linhas fixas, com a agravante, neste último caso, que há a violação simultânea do sigilo de comunicações de pessoas não investigadas. A confusão de papéis, e, mais precisamente, de patrimônio, também se verifica nas ordens de bloqueio de bens, que acabam sendo executadas contra a pessoa jurídica, cujo patrimônio não se confunde com o dos sócios/acionistas, a qual, pior, sequer é investigada no âmbito da apuração da mesma infração. Chega-se ao ponto de, na Áustria, as autoridades de persecução penal não indicarem expressamente a qualidade de investigada da pessoa jurídica a fim de impedi-la de se utilizar do “nemo tenetur se detegere”. alguns desses problemas são recorrentes no Brasil como revelam, só para ficar com dois exemplos recentes, casos das empresas envolvidas na operação “lava jato” e no próprio caso da Samarco.
Tomando as práticas reveladas pelo “Panama Papers”, discutiu-se no segundo dia do encontro sobre o crime de lavagem de capitais e também sobre os crimes tributários decorrentes da omissão de patrimônio alocado em empresas de fachada offshores.
Quanto à lavagem de capitais, destacou Bülte seu conceito fluído, empregado simultaneamente com sentidos divergentes em diversos instrumentos legais nacionais, internacionais e comunitários, como um obstáculo até mesmo à realização de pesquisa empíricas. Registrou com preocupação o processo pelo qual está passando o crime de lavagem de capitais na Alemanha: de uma figura ligada à dissimulação, converte-se em um “crime de (mero) contato” (Kontaktdelikt) com bens, direitos ou valores patrimoniais oriundos de práticas criminosas. Os fatores apontados como causas dessa transformação são (a) a amplitude dos crimes antecedentes cujo produto pode ser objeto de atos de lavagem, que será agravada pelas exigências feitas pela 4ª Diretiva Europeia; (b) a criminalização a título de lavagem não só da dissimulação, mas do mero contato com o produto do crime, agravada pela punibilidade da lavagem na forma de culpa grave em alguns casos, expressamente prevista no código penal alemão (§ 261 V StGB); e, finalmente, (c) a admissão de um conceito de contaminação extremamente amplo, adotado em recentes decisões do BGH.
O precedente a partir do qual se passou a adotar o que denominou de “total contaminação parcial” do patrimônio foi uma decisão do BGH, proferida em 2015, que considerou que o contato dos valores produto de crime antecedente com valores lícitos depositados em conta bancária tinha por consequência a contaminação total do montante, sempre que a parte oriunda do crime antecedente não fosse “totalmente irrelevante”. No caso concreto, os valores criminosos misturados aos lícitos alcançavam uma proporção aproximada de apenas 6% do valor total depositado na conta bancária (BGH, sentença de 20/05/2015 – BGH 1 StR 33/15, NJW 2015, 3254). A orientação foi recentemente confirmada pelo mesmo tribunal em outro caso (BGH, sentença de 12/07/2016 – 1 StR 595/15).
O precedente causou apreensão, porque poderá inviabilizar a sobrevivência de diversas empresas e, somado à punibilidade da infidelidade patrimonial (Untreue, § 266 StGB), tornar a administração de empresas tarefa de altíssimo risco. Isto é assim porque, com a amplitude da capacidade de contaminação admitida pelo BGH, aliada à incriminação do mero contato com os valores legítimos, chega-se a um estado de coisas que impossibilita que até mesmo os valores legítimos sejam, por exemplo, utilizados para fazer pagamentos para fornecedores de matéria prima adquirida. Haverá, portanto, uma impossibilidade de movimentação, que atingirá o montante global dos valores alocados em contas bancárias, o que, para uma empresa, pode implicar no encerramento de suas atividades. Com isso, o ato de receber valores criminosos em uma conta bancária da empresa implicará em dano patrimonial para esta e pelo qual poderá o administrador ser punido a título de infidelidade patrimonial, preenchidos os demais pressupostos desta figura típica.
Os dois temas objeto deste relato têm sido também objeto da atenção e da preocupação de juristas e profissionais no Brasil. Nada de novo nisso. O novo ficou por conta dos questões, inquietudes e preocupações expressadas pelos conferencistas, estas sim, parece-me, dignas de discussão também no Brasil.
1 Unternehmensstrafrechtliche Tage 2016: Unternehmensverantwortung und Unternehmenshaftung von und in Konzernen, Heidelberg Universität, 21 e 22 de outubro de 2016. O programa completo está disponível em http://www.jura.uni-heidelberg.de/md/jura/dannecker/unternehmensstrafrechtliche_tage_2016_programm.pdf
3 Bundesgerichtshof, o tribunal federal equivalente ao nosso Superior Tribunal de Justiça.
4 Landesarbeitsgericht, algo como o tribunal de apelação da justiça do trabalho, de Düsseldorf.
5 Landgericht, algo como o tribunal de apelação da justiça estadual, de Munique.
6 Esta decisão tem impacto amplo no tema da responsabilidade civil da diretoria pela implementação de um sistema de prevenção de delitos na empresa (compliance). Em apertadíssima síntese, o tribunal considerou que é responsabilidade da diretoria – como um todo – implementar medidas que mantenham a administração da empresa dentro dos padrões de legalidade, dentre essas medidas está a implementação de um sistema de compliance já no nível de diretoria e cuja responsabilidade central não pode ser delegada a outros membros da empresa.
7 Strafgesetzbuch, Código Penal alemão. Não temos, em nosso ordenamento jurídico, uma figura análoga a esta.
8 Bundesgesetz über die Verantwortlichkeit von Verbänden für Straftaten (Verbandsverantwortlichkeitsgesetz – VbVG).