Carvalho e Silva Advogados

Normas de transporte aéreo internacional devem favorecer vulneráveis

Por Fabiana D’Andresa Ramos

O contrato de transporte aéreo internacional, caracterizado como aquele em que ponto de partida e ponto de destino estão situados no território de Estados diferentes, constitui, entre as partes que o integram, relação jurídica de consumo atípica, posto que afetada pelo elemento estrangeiro. Dessa forma, é relação que deve ser analisada no âmbito do Direito Internacional Privado (DIPr).

Sob essa perspectiva, podemos afirmar que o contrato de transporte aéreo internacional está conectado com o direito do território de domicílio do consumidor, com o direito do território de domicílio ou sede do fornecedor do serviço, bem como com o direito do local de partida e do local de destino, estes últimos relacionados ao(s) local(is) de execução do contrato. Assim, quando, por exemplo, um consumidor domiciliado em Belo Horizonte contrata o serviço de uma empresa aérea com sede nos Estados Unidos, para transportar a ele e sua bagagem desde a cidade de seu domicílio, no Brasil, até a cidade de Toronto, no Canadá, teremos uma relação jurídica inicialmente conectada com o Direito brasileiro (domicílio do consumidor), com o Direito americano (sede do fornecedor), bem como com o Direito canadense (local de execução do contrato). Como a mesma relação jurídica não pode ser simultaneamente regulada por três ordens jurídicas distintas, é preciso definir qual delas é a mais apropriada para reger o contrato. A esse conflito de normas, que, vigendo em lugares distintos, potencialmente se aplicam simultaneamente a mesma relação jurídica, dá-se o nome de conflito de leis no espaço, que, por sua vez, constitui o objeto principal do Direito Internacional Privado.

A fim de solucionar tal sorte de conflitos, o DIPr faz uso das chamadas regras de conexão ou normas indiretas, cujo objetivo é indicar a lei aplicável a uma relação jurídica privada multiconectada. A técnica legislativa tradicional das normas indiretas baseia-se na escolha de uma, dentre as várias conexões possíveis, como a mais adequada para a indicação da lei aplicável. Assim, para as relações contratuais internacionais, o legislador brasileiro do artigo 9 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) determinou que deve ser aplicada a lei do local da celebração do contrato. Imagine-se, pois, no exemplo acima ilustrado, que durante o transporte de Belo Horizonte a Toronto a bagagem do passageiro tenha sido extraviada e não tenha chegado ao local de destino, ocasionando-lhe danos patrimoniais e extrapatrimonais, e que esse consumidor deseje reclamar da  companhia aérea americana uma indenização pelos danos sofridos. Qual Direito deve amparar seu pedido? O Direito brasileiro? O Direito americano? O Direito canadense? Considerando que o contrato tenha sido celebrado no Brasil e utilizando a regra de conexão do artigo 9, da LINDB, pode-se concluir pela aplicação do Direito brasileiro.

Pois bem, e o que determina o Direito material brasileiro sobre indenização de danos decorrentes do transporte aéreo internacional? Também aqui nos deparamos com uma multiplicidade de normas potencialmente aplicáveis à mesma situação.

O Código Civil, promulgado em 2002, regula o contrato de transporte nos artigos 730 e seguintes. Por se tratar de relação de consumo, aplica-se também ao caso as normas do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 1990. Alguns aspectos do contrato de transporte aéreo internacional são também regulados pela Convenção de Montreal, incorporada ao ordenamento jurídico interno brasileiro por meio do Decreto 5.910, de 2006. No que se refere à questão da indenização por danos, a regulamentação desses três diplomas legais é diferente, configurando verdadeira antinomia entre essas normas do Direito brasileiro. Aqui se está diante de outra espécie de conflitos de leis. Acima descrevemos o conflito de leis no espaço, quando os direitos vigendo ao mesmo tempo, mas em lugares diferentes, são potencialmente aplicáveis à mesma relação jurídica. Aqui estamos diante de normas vigendo no mesmo lugar, mas em tempos diferentes, configurando conflito de leis no tempo. Assim, por exemplo, havendo antinomia entre a Convenção de Montreal, em vigor no Brasil a partir do seu decreto de promulgação em 2006, e o Código de Defesa do Consumidor, em vigor desde 1990, qual norma deve prevalecer?

Exatamente essa questão está atualmente em julgamento no Supremo Tribunal Federal, que afetou o tema ao sistema de recursos repetitivos com repercussão geral reconhecida (número 210). No julgamento conjunto do RE 636.311 e do AgRE 766.618, são discutidos dois fundamentos para amparar o entendimento de que, havendo antinomia entre a Convenção e outra legislação interna de mesma hierarquia, deve prevalecer o disposto no texto de origem internacional.

O primeiro e mais tradicional fundamento remete a questão às regras de sobredireito que regem os conflitos de lei no tempo, especificamente ao critério da especialidade, segundo o qual a lei especial posterior derroga a lei geral anterior. Nesse contexto, a Convenção de Montreal seria considerada norma especial que regula o contrato de transporte aéreo internacional, e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, norma geral, que regula as relações de consumo como um todo.

O segundo fundamento se utiliza do artigo 178, da Constituição Federal, para afirmar que, no caso de conflito de leis relativo ao contrato de transporte aéreo internacional, o legislador constitucional determinou que as normas de origem internacional devem prevalecer sobre as normas de origem interna e que, no caso, a regra constitucional prevalece inclusive sobre as regras internas de solução dos conflitos de lei no tempo. Trata-se, pois, de fundamento mais amplo que o anterior. O primeiro fundamento estaria, então, contido nesse segundo.

Ambos os fundamentos, no entanto, partem de uma premissa equivocada, posto que em completa desconformidade com as teses atuais sobre conflitos de leis. A premissa equivocada é a de que a antinomia de normas dentro do mesmo sistema deva ser resolvida pela aplicação exclusiva de uma das normas em detrimento da outra. Ou bem se aplica uma norma ou bem se aplica a outra. Esse silogismo simples é próprio do ultrapassado pensamento positivista da subsunção das normas, segundo o qual, para cada relação fática existiria somente uma única e exclusiva norma de Direito aplicável. Ora, hoje vivemos reconhecidamente um tempo de pluralidade de normas, que afetou sobremaneira a solução dos conflitos de lei, tanto no tempo como espaço. Atualmente, considera-se que as relações jurídicas raramente estão submetidas a um único corpo de normas, mas que, ao contrário, são regidas por um conjunto difuso de regras e princípios, que, ao invés de se excluírem mutuamente, se completam e dialogam entre si, sendo a missão daquele que diz o direito traduzir esse diálogo e encontrar para cada conflito, a partir de técnicas contemporâneas de hermenêutica, uma solução que favoreça a harmonia interativa do sistema, e não a sua fragmentação. Assim, a técnica jurídica hodierna para solução de conflitos privilegia a inclusão, e não a exclusão de normas. Dessa forma, a aplicação da Convenção de Montreal não exclui a aplicação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, ao contrário, ambos se aplicam a relação jurídica decorrente do contrato de transporte aéreo internacional, devendo aparente antinomias serem solucionadas através de uma interpretação integrativa e harmônica do sistema, que comporte a preservação dos princípios e fundamentos que o sustentam.

Diante da pluralidade de fontes aparentemente antagônicas entre si o caminho que se tem encontrado tanto no Direito interno como no Direito estrangeiro e internacional é o de se perquirir o objetivo material concreto das normas, em última instância, uma interpretação axiológica das normas e do conflito em si. Esse caminho é especialmente importante para aquelas situações em que se almeja a melhor proteção da pessoa humana, sobretudo dos mais vulneráveis.

No DIPr, esse caminho se tornou evidente a partir de duas técnicas legislativas distintas, mas complementares entre si. A primeira foi a utilização, na redação das normas indiretas, de múltiplos elementos de conexão, subordinados ou alternativos, viabilizando assim a flexibilização da até então rígida norma de conflito. A segunda técnica é a da redação de normas narrativas, expressão cunhada pelo emérito professor da Universidade de Heidelberg Erik Jayme para se referir a normas de DIPr que não têm por objetivo indicar a lei aplicável, mas descrever o objetivo material concreto que se almeja garantir na solução do conflito de leis.

No Direito interno, deve-se à professora Claudia Lima Marques a difusão da técnica do diálogo das fontes, especialmente no âmbito do Direito do Consumidor, uma vez que as relações de consumo não raras vezes estão submetidas a estatutos jurídicos diferentes. As relações de crédito entre um consumidor idoso e uma instituição financeira, por exemplo, estão submetidas simultaneamente, no nível infraconstitucional, ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor, ao Estatuto do Idoso e às leis que regem o sistema financeiro nacional, as quais devem ser conjuntamente interpretadas e aplicadas conforme os limites impostos pelos princípios e normas constitucionais.

Assim também no transporte aéreo internacional. Diferente do que ora se discute no julgamento do STF, a aplicação da Convenção de Montreal não afasta a aplicação do CDC. Aqui é preciso fazer breve menção à criativa e demasiado alargada interpretação que o STF está buscando dar ao artigo 178, da Constituição Federal. De acordo com os votos já proferidos no julgamento conjunto, a tese apresentada é a de que o artigo 178 seria uma regra constitucional de conexão, ou seja, uma norma indireta de DIPr com sede constitucional, que indicaria a norma aplicável às normas que solucionam conflitos de lei. Seria uma norma indireta sobre uma norma indireta. Tal regra teria o poder inclusive de afastar o princípio de proteção do consumidor inserido no inciso XXXII, do artigo 5, o qual expressamente o voto não reconhece como direito fundamental, mas como norma de princípio institutivo.

Trata-se de uma construção que se poderia mesmo chamar de fantasiosa, criada para justificar uma tese que por si só não tem fundamento. O artigo 178 não é uma norma de DIPr, tampouco uma regra de conexão. E não o é porque claramente seu objetivo não é indicar a lei aplicável a eventual conflito de leis no espaço em matéria de transporte aéreo, nem mesmo indicar a lei que deve prevalecer na aplicação das normas de sobredireito aplicáveis para solução dos conflitos de lei no tempo. Não existe nada no texto constitucional que corrobore essa interpretação. O texto é simples e não comporta significados mirabolantes. Contém somente um mandamento ao legislador brasileiro, o qual, se for legislar sobre a matéria de transporte aéreo internacional, deverá observar os tratados internacionais sobre o tema. Não é uma norma de conflito. Não indica uma preferência da legislação de origem internacional sobre aquela de origem interna. Nenhum sentido existe em criar para a regra constitucional uma interpretação completamente desconforme com o DIPr contemporâneo, que desde o século passado abandonou as regras de conexão rígidas e indiferentes ao resultado material da solução do conflito de leis e passou a adotar conexões flexíveis, sempre buscando a melhor proteção da pessoa humana.

Tendo em mente a atual realidade do Direito Internacional, a regra do artigo 178 deve ser interpretada em conjunto com aquelas do artigo 5, V, X, XXXII e parágrafo segundo, bem como com aquelas do artigo 1, III; artigo 4, II e artigo 170, V, todas da Constituição Federal e todas contemplando a necessidade de proteção dos consumidores e conferindo a essa proteção status de direito fundamental. Também no âmbito do Direito Internacional Público, a Organização das Nações Unidas, em recentíssima atualização das suas diretrizes para proteção dos consumidores, reconheceu a necessidade de fortalecer a proteção do consumidor vulnerável e em posição de desvantagem, bem como reconheceu como duas de suas necessidades legítimas a proteção contra danos e proteção dos seus interesses econômicos.

Fica evidente, pois, que tanto o Direito Constitucional e Infraconstitucional internos, bem como o Direito Internacional clamam pela proteção do consumidor vulnerável. Trata-se de uma diretriz axiológica de todo o sistema de Direito Privado, Interno e Internacional. A fim de atender esse resultado material determinado pelo ordenamento, desenvolveu-se para os conflitos de lei que envolvam sujeitos vulneráveis o critério da norma mais favorável.

Diante dos fundamentos expostos, a solução do conflito de leis, no espaço ou no tempo, que se apresente numa relação que tenha por um dos seus sujeitos um vulnerável, não se dá mais pela ultrapassada técnica de derrogação de uma norma pela outra, mas, sim, pela aplicação simultânea das normas incidentes e escolha daquela mais favorável à pessoa vulnerável. Essa a opção clara do legislador estrangeiro. Essa a opção clara do conjunto normativo internacional. Essa a opção clara da norma constitucional brasileira. Essa a opção clara do próprio STF, que no julgamento do HC 90.450, com relatoria do ministro Celso de Mello, declarou que:

“Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs”.

Estando o Direito do Consumidor claramente inserido dentro da sistemática contemporânea dos direitos humanos, cabe ao STF agora, no julgamento conjunto dos RE 636.311 e do AgRE 766.18, ter em mente o resultado material da solução do conflito de leis que se apresenta. As normas materiais da Convenção de Montreal protegem o sistema composto das transportadoras aéreas internacionais. As normas materiais de origem interna, especificamente o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, protegem a pessoa vulnerável. Diante dessa realidade, quem nossa corte constitucional protegerá? A pessoa ou o sistema?